Protocolar
O terror já estava anunciado.
Primeiro foi a ordem das bandas que tocariam naquela noite de sábado.
Eram quatro bandas, e os Crop Circles tocariam por último, na mesma ordem que indicava o flyer impresso pelos organizadores do evento.
Era a festa de aniversário de Dumbo, baixista da banda Fair Saints, em Barueri, e os shows aconteceriam na casa dele, num condomínio de gente rica.
O primeiro impasse surgiu quando Zími questionou Mila Cox sobre como ela se sentiria tocando músicas que invariavelmente falavam sobre sustentabilidade libertária, desigualdades e injustiças sociais, num ambiente como aquele.
Ela disse que no dia em que confirmou que tocariam na festa, pensava no quanto seria bom para eles estarem num ambiente que não era exatamente o que eles idealizavam tocar quando se uniram para fazer música, pois a maioria das pessoas presentes não entenderiam o que eles estavam dizendo, e isso seria engraçado e ao mesmo tempo seria mais um passo no caminho para uma popularidade maior, pois aquela gente conhece pessoas que estão fora do raio de alcance que a banda teria se rejeitasse o convite.
Não haveria cachê em dinheiro, mas a gasolina seria paga por Dumbo, e o uísque seria ilimitado para todos. O problema seria manter Zími em condições de tocar depois de assistir três shows com tanta bebida de qualidade à disposição.
Portanto Mila Cox não pensou que seria hipocrisia tocar para os playboys que eles tanto satirizavam. Pensou que seria melhor ainda poder satirizá-los na casa deles, sem perder a amizade.
Ela sabia que depois poderiam voltar a tocar em porões citadinos onde se sentiam mais à vontade.
Mencionou ainda o dano causado na carreira dos Beach Boys por não terem participado do Monterrey Pop Festival.
Quando não eram a única banda a se apresentar, onde quer que fosse, os Crop Circles gostavam de tocar antes, para assistirem às outras bandas e para que Zími pudesse beber sem se preocupar com mais nada.
Dessa vez, o uruguaio Silvano faria o primeiro show, e sabendo que era uma festa de playboy, iria beber o uísque servido ali, ao invés de comprar cachaças artesanais que sempre levava quando ele e seus amigos tinham show para fazer.
Além dos Fair Saints, a outra banda que tocaria entre os shows de Silvano e dos Crop Circles seria o Lombra., também formada por garotos ricos do mesmo condomínio.
Os Crop Circles já passaram por isso antes, mesmo antes de terem conhecido Silvano, quando andavam no Chevette de Mila Cox. Agora ela tem um amplificador Orange para o baixo em vez do Chevette.
Dessa vez, no entanto, Mila Cox convidou Laura para esse show.
Laura era uma garota que trabalhava na padaria que eles frequentavam no bairro da Liberdade, onde moravam.
Zími era secretamente apaixonado por ela e nem sonhava em encontrá-la ali.
O show de Silvano começaria às quatro da tarde. À essa altura Zími já tinha visto Laura ali e sumiu da vista de Mila Cox.
Antes, ao entrarem na bela casa onde rolava a festa, pensaram naqueles filmes juvenis em que os pais saem de férias e os filhos tocam o terror.
Durante o show dos Fair Saints ela o procurou novamente, sem sucesso. Foi no meio do show do Lombra que Silvano o encontrou fumando maconha dentro de uma piscina vazia que havia na casa, sentado, aparentemente contando os azulejos.
Silvano, que a essa altura já bebia uísque direto do gargalo, falou: “Está maluco? Você tem show daqui a pouco!”
Zími: “Eu já ia voltar! Não sabia que essa mina estaria aqui!”.
Silvano: “Mostre pra ela que você é artista, quando você voltar naquela padaria, ela vai te ver de outra forma!”
Zími tinha visto um pedaço do show dos Fair Saints e achou fraco ao vivo, embora tenha gostado do que ouviu deles numa gravação que Mila Cox lhe havia mostrado.
Ficou bastante surpreso com o show do Lombra, que era uma banda Glam, e tinha o vocalista Borboleto, um cara jovem e completamente maluco, que parecia ter saído do ano de 1973 só para fazer aquele show.
Alto e magro, loiro de cabelo comprido, ele se pintou de prateado e fez o show vestindo apenas um modelo antigo de short curto de futebol.
Arrastava-se, jogava-se no chão, carregou o guitarrista no ombro durante um solo que ele fazia.
Não tinham muito material autoral, e para completar o tempo do show, incluíram alguns covers, com destaque para uma versão muito bem executada de ‘Pets’, do Porno For Pyros.
Quando Silvano levou Zími para onde estava Mila Cox, num banheiro da casa que servia como camarim, ela disse:
“Ainda bem que você não está muito bêbado.”
Aquela jovem. de cinquenta quilos segurando seu baixo Fender Jazz Bass azul sempre o intimidava muito mais do que qualquer outra coisa, fosse a necessidade de superar um show legal apresentado antes dele, ou a presença de alguma garota que ele gostava na plateia.
Os Crop Circles acabaram por fazer um bom show, até protocolar para quem já os conhecia, mas agradou tanto que Dumbo não queria que eles fossem embora dali depois da festa.
A casa era grande e havia quartos de hóspedes suficientes para que Zími, Mila Cox e Silvano morassem ali.
O sábado e o domingo acabaram se transformando num dia só, com a festa se estendendo até o dia seguinte.
Partiram na Kombi de Silvano no domingo à noite.
Mila Cox falou: “Acho que foi a melhor gig que fizemos.”
Zími: É porque as outras bandas eram legais. Achei que seria difícil superar o show do Lombra.”
Silvano: “O que era aquele vocalista? Requer muita coragem fazer aquilo.”
MIla Cox: “Sim, ele é cool pra caralho. Quando tocamos com outras bandas, é preciso que sejam boas mesmo, senão a gente fica estagnado, com o jogo ganho.”
Zími: “E a Laura?”
Mila Cox: “Arrumou uma carona pra São Paulo e voltou. Tinha que trabalhar domingo na padaria.”
Cada um tinha pego uma garrafa de uísque de lembrança e voltaram para casa ouvindo o álbum ‘The Dock of the Bay’, de Otis Redding.