FAZENDA VENTUROSA
Contam que Nicolau Ventura, nos idos dos anos 700, juntou-se com os caçadores de escravos e, andando pelo mato virgem, quando chegou nas imediações do que hoje é o município de Jundiaí, encantou-se com a beleza do lugar e resolveu montar uma fazenda.
Naquele tempo qualquer um que demarcasse a terra e ocupasse com casa e família, recebia o título de posse dado pela coroa. E foi o que ele fez.
Marcou um terreno bem grande, mandou construir o casarão, arranjou uma bugra mestiça de branco com índio e com ela teve mais de doze filhos.
Nessa época havia mineração de ouro lá para os lados das Minas Gerais e, tanto para o trabalho como para o transporte, o burro se mostrou ser o melhor, porque tinha o porte do cavalo e a resistência do jumento.
Nicolau era homem de visão e, aproveitando-se da amizade com os comerciantes de escravos, mandou trazer jumentos africanos para cruzar com as éguas roubadas dos Guaranis das terras do Sul.
Os burros produzidos eram vendidos para bandeirantes, mineradores e almocreves que eram os encarregados de abastecer as fazendas distantes e trazer as novidades das cidades, da política, das invasões, das guerras e, principalmente dos ladrões.
No início dos anos 800, quando a família real se mudou para o Brasil, os burros do Sr. Nicolau Ventura já eram famosos tanto pela beleza do porte como pelo andar macio.
Então o príncipe Dom João, mandou comprar vários e os demais nobres também encomendaram montarias já devidamente amansadas.
Dizem até que quando Dom Pedro proclamou a independência em 1822 ele estava montado numa burra zaina produzida na Fazenda Venturosa.
Com o passar dos anos a fazenda foi sendo administrada pelos herdeiros do velho Nicolau que mantiveram a produção de burros de boa linhagem...
Acontece sempre que quando algo está dando certo, aparece alguém para fazer o mesmo, para abrir concorrência, prejudicar o oponente, botar defeito do no que está feito e assim apareceu lá para os lados da Serra da Mantiqueira, um sujeito que montou fazenda nos mesmos moldes da Venturosa e passou a produzir burros, tão bons quanto os que já tinham mercado garantido, mas com preço menor por conta da proximidade com o mercado consumidor das cidades grandes como Rio de Janeiro, Paraty, Vila Rica e outras mais espalhadas pelo país que ainda era essencialmente agrícola.
Qualquer concorrência é válida desde que seja honesta, mas Manuel Mendes fazia propaganda dos seus burros colocando defeitos nos animais da Fazenda Venturosa.
Todo mundo sabe que os jumentos e os burros, seus filhos, quando alguma coisa por perto deles está diferente, eles murcham as orelhas em sinal de prontidão. Tanto isso é verdade que deu origem ao ditado popular - Quando um burro fala o outro murcha a orelha.
Nas rodas de conversas, espalhou-se a notícia de que os burros da Venturosa tinham defeito nas orelhas e essa propaganda enganosa foi motivo de assassinato de ambos os lados e nascedouro de inimizade ferrenha transmitida aos descendentes de muitas gerações.
Novos tempos, novas amizades, Tobias Ventura e Amélia Mendes, legítimos representantes das famílias arqui-inimigas desde a quinta ou sexta geração anterior, se enamoraram, casaram contra todas as argumentações das famílias e Amélia foi morar na fazenda Venturosa que estava sendo administrada pelo marido.
Dona Antônia Ventura, mãe de Tobias, prometeu até suicídio para evitar o casamento do filho, mas não adiantou.
Eles casaram e a nora veio para o casarão cujas paredes estavam impregnadas do rancor mais que centenário.
O mal-estar do ácido convívio diário entre sogra e nora serviu para acelerar os problemas do coração da velha senhora que nutria desde a mais tenra idade, ódio ferrenho contra todos os Mendes cuja fazenda abandonara a produção de animais e agora era produtora de café.
A dona Antônia, por considerar inaceitável o convívio com uma Mendes sob o mesmo teto, resolveu mudar-se.
Para não magoar o filho, alegou que a transferência para a capital seria para facilitar o tratamento com o médico e que estaria muito bem assistida porque traria também a afilhada Moema como dama de companhia e encarregada de preparar suas refeições na Pensão Aurora, da sua velha amiga Aurora Di Piro, viúva de Leôncio Ventura, seu irmão, aonde teria todo conforto, e o melhor, longe daquela “sujeitinha” que lhe roubou o filho caçula.
GLOSSÁRIO
Almocreve = pessoa que conduz besta de carga
Bugre = termo pejorativo, referência aos não cristãos
Quando um burro fala o outro murcha a orelha = quando alguém está falando os outros devem prestar atenção, ainda que seja remansada tolice
Vila Rica = a partir de 1823 denominada Ouro Preto
Zaino = animal de pelo muito escuro sem manchas