PENSÃO AURORA
Na Rua Treze de Maio, bem próximo à Paróquia de N. S. Achiropita, num venerável sobradão ficava a Pensão Aurora da “vecchia maledetta” Aurora Di Piro.
Magra, bem mais alta do que a maioria das italianas, invariavelmente vestia preto, mangas longas e decote alto como se estivesse eternamente de luto, colar de pedras verdes ao pescoço e cabelos presos em coque na altura da nuca.
A pensão servia o café da manhã e exigia desde a contratação o adiantamento de três meses de aluguel que seriam devolvidos, proporcionalmente, quando o inquilino resolvesse sair.
Nonna Aurora, como exigia ser chamada por todos, entendia os hóspedes como membros da sua família, portanto sob suas ordens, principalmente Ondina, a moça que veio da Bahia tentar a sorte em São Paulo e calhou hospedar-se na pensão e por lá mesmo ficou como “faz tudo” desde a calçada a ser varrida diariamente até o quintal onde as galinhas garantiam os ovos do desjejum dos inquilinos.
Atendente prestimosa era responsabilizada por tudo ou qualquer coisa que não estivesse do agrado da Nonna Aurora que entre acenos dramáticos gritava-lhe impropérios ininteligíveis.
O café da manhã era serviço das cinco e meia na sala grande depois do corredor dos quartos.
Mesa única, comprida, forrada com toalha nas cores da bandeira italiana. Louça branca e talheres de prata.
Nonna Aurora permanecia sentada na cabeceira da mesa até as seis e meia quando a refeição era dada por encerrada.
Quem comeu, comeu, quem não comeu vá comer na rua porque na Pensão Aurora os horários estabelecidos eram cumpridos à risca.
Na sala da frente do casarão ficavam as cadeiras de visitas, poltronas estofadas, mesinhas com cinzeiros, porta chapéus e guarda-chuvas, estantes com livros e sobre o console um rádio antigo.
As luzes das áreas comuns permaneciam acesas até as dez da noite, quando todos deveriam ir para seus aposentos e o silêncio deveria reinar até a manhã seguinte.
Era nessa sala que diariamente os inquilinos se reuniam para conversar sobre suas atividades e sobre os acontecimentos mundo a fora.
Gertrudes, bailarina do teatro municipal, raramente estava presente por conta dos ensaios que se prolongavam até tarde da noite.
De origem alemã, era moça sisuda, de poucas conversas e a única a ter cópia da chave para entrar sem precisar acordar Ondina que ocupava o último quarto da pensão.
Quase sempre Nonna Aurora estava sentada na sua poltrona favorita esperando a bailarina para ver se ela trazia algum acompanhante. Afinal a sua pensão era familiar, de respeito inatacável e assim deveria permanecer...
Dona Laodiceia, solteirona de idade indefinida, era professora estadual transferida para a capital para lecionar língua portuguesa.
Estava sempre carregando cadernos dos alunos para corrigir e participava das conversas com raros esclarecimentos sobre dúvidas dos participantes.
Era considerada enciclopédia viva por conta do cabedal de conhecimento que, sem alarde, demonstrava possuir.
Yussef, era vendedor viajante, geralmente saía nas segundas feiras pela manhã e voltava nas tardes das sextas feiras.
Em conversas animadas pelos assuntos eletrizantes, dizia-se libanês, turco, egípcio, palestino, saudita, jordaniano ou de qualquer um daqueles países a fim de dar realce à sua opinião.
Com incrível capacidade de alterar as convicções a fim de ter sempre razão, era quem mais aparecia nas conversas, contando as peripécias da profissão e de como havia saído com vantagem nas múltiplas negociações, mas estava sempre a reclamar do baixo rendimento e da impossibilidade de visitar os parentes distantes pelos altos preços de tudo.
Mensalmente dramatizava, chegando às lágrimas pelo desespero ao declarar-se falido quando tinha que efetuar o pagamento.
Invariavelmente pedia desconto pelos dias em que o quarto esteve desocupado por causa das suas viagens, mas Nonna Aurora mantinha-se irredutível.
Se não tinha como pagar, devia desocupar o quarto, porque não faltavam pessoas procurando local para morar.
As discussões em português com muitos termos árabes e italianos era diversão garantida para os outros inquilinos que assistiam ao espetáculo como plateia privilegiada e, mesmo sem emitir opiniões, eram chamados a aderir a um dos lados.
Por fim, tudo voltava ao normal, mas só até o primeiro dia do mês vindouro quando a negociação voltava com força total.
Chang Pu, chinês que diferente dos seus conterrâneos, preferiu alugar um quarto a ter que morar no serviço.
Era encarregado de lavanderia e sua voz só era ouvida ao cumprimentar pela manhã, quando comia a cuia de arroz com chá verde.
Às oito da noite, quando voltava para a pensão, cumprimentava a todos com aceno de cabeça e não saia mais do quarto. Nunca participava das conversas e somente o cheiro suave do incenso votivo, revelava a sua presença.
Inocêncio, gaúcho de Pelotas, era estudante de medicina e o único inquilino autorizado a ter a lâmpada do quarto acesa durante toda a noite para poder estudar.
Diariamente pedia uma garrafa térmica com água quente para o chimarrão.
Por conta dos estudos, raramente participava das conversas na sala de visitas, mas quando acontecia, trazia a conversa para o campeonato de futebol e como todo torcedor do Palmeiras, arranjava defeitos nos jogadores do Corinthians para provocar Yussef, corintiano apaixonado pelo clube do coração, que revidava em altos brados ...
Dona Antônia Ventura era de tradicional família produtora de burros de carga e montaria na região de Jundiaí.
Por conta da ácida convivência com a nora, Amélia Mendes, descendente da família arqui-inimiga, resolveu vir para a capital, aonde teria melhor acompanhamento médico para os problemas do coração e ficaria na pensão da sua amiga de longas datas, Nonna Aurora Di Piro, bem melhor que qualquer hotel.
Nos dias em que não precisava ir ao hospital, ficava na sala de visitas fazendo tricô junto com Moema, empregada e afilhada que trouxe para fazer-lhe companhia e preparar as refeições, conforme fora acordado com a Nonna Aurora.
Quando recebia as guloseimas trazidas pelas pessoas do interior que vinham lhe visitar, distribuía com os demais hóspedes, especialmente a professora e o sr. Yussef que se desmanchava em elogios e agradecimentos...
Numa manhã muito fria, bem antes do sol aparecer, a Pensão Aurora foi sacudida pelo alarido feito por Moema, a empregada de dona Antônia, que desesperada surgiu na sala de refeições com a trágica notícia do falecimento da velha senhora.
Alguém precisava comunicar aos familiares.
Alguém precisava chamar a polícia.
Alguém precisava comunicar ao IML.
Alguém precisava contatar o médico assistente a fim de esclarecer a causa da morte.
Nonna Aurora ligou para a polícia e, a cobrar, para o número que lhe havia sido entregue por Tobias, filho da dona Antônia, porque os familiares já esperavam pelo breve desenlace.
GLOSSÁRIO
Nonna = avó
Vecchia maledetta = velha maldita