Histórias que gosto de contar – As crianças da Paca Sul
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 13 de junho 2023
Campina das Missões, no Rio Grande do Sul, cuja história tem início em 1902, formou-se a partir da colonização em terras localizadas entre os Rios Uruguai e Comandaí. Essa região abrigava campina e mata virgem, propícia para assentar os imigrantes que chegavam ao nosso País, originários, principalmente, da Alemanha. A experiência desses imigrantes na agricultura proporcionou resultados satisfatórios em suas atividades de cultivo de soja, milho, trigo, feijão mandioca e girassol. A pecuária leiteira também contribuiu para o estabelecimento de colonos nessa área em desbravamento, gerando renda e facilitando a permanência em comunidades, de famílias ali assentadas.
Em uma dessas comunidades, a Linha Paca Sul, distante 15 km da sede do município de Campina das Missões, algumas famílias descentes de alemães se estabeleceram com o propósito de explorar solos agricultáveis. Uma dessas famílias, a do senhor Klaus e dona Evelyn, e seus dois filhos, Adam e Raika plantavam milho, feijão, trigo e mantinham três vacas. Toda a família participava do plantio à colheita, de todos os cultivos. A mãe e o pai ainda cuidavam das vacas, com o serviço mais pesado ficando a cargo do pai. As crianças, além de trabalharem na roça, tinham que estudar.
A escola ficava a 13 km da casa deles, não havia transporte direto até lá. A primeira etapa, 7 km, era vencida a pé. O percurso restante era de ônibus, fornecido pela Prefeitura de Campina das Missões. Eram, ao todo, duas horas de viagem, de solavanco em solavanco. A coisa se complicava quando chovia. A estrada era de barro, solo fofo, vermelho, que afundava quando pisado. O pai das crianças não queria nem saber, era para eles irem de qualquer jeito. Seu fusca velho ainda rodava, só para trabalho relacionado com o roçado. A mãe pedia que ele fosse deixá-los na parada do ônibus da escola, não era atendida, não poderia gastar gasolina, iria faltar dinheiro para comprar comida.
Certo dia, ao saírem de casa para a escola, não havia sinal de chuva. Despediram-se dos pais e tomaram o caminho para pegar o ônibus logo mais adiante, 5 km na escuridão. Não teve jeito, o pai não permitia que eles perdessem aula, tinham que aprender a ser gente, para não passarem pelo que estavam passando agora. No meio do caminho caiu uma tempestade, era lama descendo pela estrada, deixando o terreno escorregadio e difícil de se andar. O pai era linha dura, as crianças obedientes, não pararam um minuto sequer, chegando ao ponto de ônibus que os levaria à escola, o motorista ainda os esperava. Muitos garotos demoraram a chegar.
Já na escola, todos os dois molhados, os sapatos encharcados de lama, com os sulcos de seus solados entupidos de lama, e a escorrer sobre o assoalho da sala de aula, seus colegas, às gargalhadas, passaram a insultá-los:
─ Aí crianças da Paca Sul, trouxeram todo o solo da fazenda de seu pai para cá?
─ É verdade, e não é só nos sapatos, nas calças também tem areia, e parece lavagem de porco, fede.
A garotada caia na gargalhada, não deixavam os dois sossegados que, cabisbaixo, estavam prestes a chorar. Adam, o de mais idade, tentava acalmar Raika, timidamente encolhida no canto da sala de aula. Uma coleguinha foi buscar algumas folhas de jornal para limpá-los. Outra emprestou uma toalha de rosto e um pente, para a menina recompor-se.
Maila, a garota mais velha da turma e mais sensata, gritou:
─ Vocês não têm vergonha de fazerem isso com os colegas? Vamos parar com essa brincadeira!
Na sala fez-se silêncio. A professora, que também estava atrasada por causa da chuva, acabara de entrar. Estranhou aquela confusão, olhou para o chão e vendo aquela lama, pediu para um garoto ir até a cozinha, pegar uma vassoura e um balde com água para limpar a sala. Os mais engraçadinhos iriam fazer esse serviço, e muito bem-feito, exclamou a professora!
Todos envergonhados, baixaram suas cabeças e foram tentar conseguir mais um balde e vassouras. Em poucos minutos tudo estava limpo, a aula daquele dia foi sobre solidariedade. Ao término, a classe pediu desculpas aos dois irmãos, que, satisfeitos, aceitaram aquele gesto de humildade. Todos prometeram não mais zombar de quem quer que seja, independente do motivo.
Daquele dia em diante, passaram a ajudar aos que se encontrassem em situação de vulnerabilidade.