Histórias que gosto de contar – Suspense na rotina da roça
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 6 de junho 2023
Um dia normal, mais uma rotina, cansativa, mas já estava acostumada. Começa às cinco horas da manhã, acorda, ordenha duas vacas, para ter na mesa o leite do café das crianças, como trata todos os oito filhos, duas meninas e seis meninos. Os três de mais idade, 13, 14 e 15 anos, levantam-se mais cedo, se arrumam para irem à escola. Os outros três estudam à tarde, não têm pressa de acordar. A mãe da dona da casa, paraplégica, resultado de uma queda, peraltice, trepar em um pé de manga, deitada em uma pequena cama, a primeira a receber o café da manhã. Acordada desde às primeiras horas do dia.
A buzina do pau de arara, caminhão coberto, com bancos de madeira, longitudinais na carroceria para levar pessoas acomodadas, anuncia que está na hora das crianças irem para a escola, 30 km de distância, estrada de barro, muita poeira no caminho. A mãe assistindo à partida do velho caminhão, saindo pela estrada sacolejando, fazendo barulho e levantando poeira. Dia de chuva é uma complicação. A volta sempre combinada para às 13 horas. No velho veículo já há outras crianças, de lugares mais distantes. Todas sentadas e comportadas obedecendo ao comando do chofer, sem carteira de habilitação. Aprendeu a dirigir com o pai, que também faz esse serviço, que é pago pela prefeitura.
Dona Gertrudes, viúva, trabalhadora da roça, o pai ensinou a pegar na enxada, roçar, plantar e colher. Mãos calejadas, mas nunca reclama. Não foi à escola, não tinha por perto, não sabe ler nem escrever. Também nunca saiu de casa para um passeio, nem para visitar um médico; tratamento natural, com ervas locais, sabe tudo sobre isso, ensinado por um preto velho, de pai africano. Seu divertimento é cozinhar e ver as crianças saboreando e falando que tudo tá gostoso, mesmo que não tivesse, só para não a aborrecer.
Enquanto as crianças dormem, até as oito horas, ela vai para a roça colher o necessário para preparar o almoço, a merenda da escola e o jantar. Tem de tudo, feijão, milho, mandioca para a farinha, tomate, pimentão, pimenta vermelha, quiabo, maxixe, batata doce, cebolinha e coentro. Entre as frutas, encontram-se melancia, laranja, banana, goiaba, limão, maracujá, graviola, ata, e outras tantas mais. Ainda cria galinhas e patos para complementar as refeições da família. O terreno é fértil, fica na encosta de uma serra. O arroz, o açúcar, o café e o sal, comprados na venda localizada em frente à escola Para substituir o pão tem a tapioca. O pagamento feito mensalmente, depois da apresentação da caderneta com as respectivas anotações.
Vizinhos, distante para mais de quilômetros, terra e casa herdadas do pai do marido, que já encontrou tudo do jeitinho que é hoje, nada modificado, apenas aumentado a área de plantio e algumas introduções de especiarias e temperos. Um açude, feito pelo sogro guarda peixes e camarões para o reforço alimentar.
Quase na hora do retorno do pau-de-arara, trazendo os filhos maiores, é a vez de aprontar os menores para irem à luta, aprender a ler e escrever. Todos de barriga forrada, fardas e sapatos, cuidadosamente passadas e lustrados, e quietinhos sentados no alpendre da casa, a esperar. As horas passam e o caminhão não chega. Inquieta, a mãe não pode fazer nada, não passa ninguém para trazer notícias. A aflição aumenta, as crianças indóceis, quase ficando rebeldes, nunca perderam um dia de aula. As horas se duplicam, o desespero enlouquece a todos, a senhora paralítica também participa da agonia, a gritar pedindo informações sobre o que está acontecendo fora da casa.
O choro aumenta, mãe corre de um lado para outro, ameaça vencer os 30 km a pé, desaconselhada pelos filhos, pelo berreiro deles. A paralítica ameaça levantar-se da cama, não consegue. A mãe desmaia, jogam água sobre ela que desperta mais apavorada. Pede para todos rezarem, mas ninguém conhece uma reza, só os três maiores, os que estão na escola.
Lá longe percebem o levantar de poeira na estrada, parece cavalos em passos um pouco apressados. Eles se aproximam, já dá para ver que é uma carroça, e há alguns meninos sentados. A carroça traz os três filhos de dona Gertrudes, mais os três da casa mais distante. Ao vê-los, sãos e salvos, a mulher pendurou-se no pescoço dos três, enchendo-os de beijos e afagos, não sabia se chorava ou sorria, só alegria!
O carroceiro deixou as crianças com a mãe, e rumou para entregar os outros três. O que aconteceu foi descrito pelo Edmilson, o maior, que relatou: o caminhão, ao ir apanhar os alunos para levá-los de volta, bateu em um carro quase na porta da escola, com prejuízo enorme para o dono do automóvel, embora um pouco velho, ainda servia para alguma coisa. Chamaram a polícia para determinar de quem fora a culpa, recaindo no motorista do caminhão. Pedido os documentos, constatou-se que ele não os tinha. A polícia prendeu o caminhão e o seu motorista, impedindo-o de levar os alunos para as suas casas. Não havia ninguém disposto a fazer esse serviço. O jeito foi mandá-los na carroça do seu Mosquito, que morava lá para as bandas do Carreirão, local de moradia dos meninos.