Eu Resisti Onde Tudo Era Força Bruta

O ano era 2008. Eu tinha vinte e quatro anos. Tinha formado em enfermagem há dois anos quando fui contratada para ser uma das acompanhantes de Dona Clarice.

Ela estava com setenta e sete anos. Era uma mulher forte, inteligente, vivaz e independente. Mas seu coração estava um pouco fraco e inspirava cuidados. Tinha passado por uma cirurgia. Seu filho não queria que ela ficasse sozinha. Era muito zeloso com ela.

Ela, depois de muitas discussões com o filho, aceitou ter acompanhantes. Eu ficava com ela de segunda a sexta durante todo o dia.

Ela sempre tinha muito o que fazer. Lia, bordava, tecia, escrevia e se mantinha sempre muito bem informada. Tinha seus conceitos e crenças sobre tudo que se passava ao seu redor. Falava de religião, de política, de educação, saúde, psicologia, culinária, de lugares que conheceu, de sexualidade. Sempre tinha muitos assuntos e sempre interessantes.

Ela me ensinava muito sobre a vida, sobre o mundo e sobre as pessoas.

Eu aprendi a amar aquela mulher e ela se afeiçoou a mim como se eu fosse sua filha.

Eu já estava trabalhando com ela há quatro anos. Por esta época ela precisou ser internada. Ficou vários dias em uma UTI cardiológica. Eu, as outras acompanhantes, seu filho e seus netos dávamos toda a assistência a ela.

Ela voltou para casa, mas sabia que seu coração estava cada vez mais fraco e que a qualquer momento poderia lhe pregar uma peça e parar.

E um dia ela me disse:

-Sabe que eu queria ter escrito um diário. Mas a vida foi acontecendo tão rapidamente e tão de surpresa que o diário acabou caindo no esquecimento.

-Eu nunca pensei em escrever um diário, mas também minha vida sempre foi tão certinha e sem graça que nem precisaria de um diário.

-A minha pelo contrário, foi cheia de acontecimentos marcantes, conflitos e combates.

-Nossa! Combates?

-Sim. Quer que eu lhe conte? Não tenho nada pra esconder, daqui uns dias já não estarei mais aqui e minha vida pode até servir de exemplo pra alguma ovelha desgarrada.

-Ovelha desgarrada?

-Sim. Eu sempre fui uma, com muito orgulho.

-Quero que me conte

Os olhos dela brilharam e ela começou a falar devagar

-Naqueles tempos em que eu era menina, adolescente e jovem a vida e as vontades de uma mulher tinham muito pouco valor. O homem era o cabeça do casal, o pai mandava na filha e a mulher sempre ficava com as ocupações que exigissem menos de sua intelectualidade. Para os homens daquela época, mulher não era feita pra pensar.

Mas eu já nasci diferente. Eu sempre fui cheia de idéias, sempre fui criativa e questionadora. Quando eu era criança meus pais e meus tios até achavam engraçado aquela menina que sempre tinha uma resposta na ponta da língua. Mas à medida que fui crescendo eles começaram a querer me tolher. E eu não estava disposta a me calar ou me aquietar. Meu pai não queria que eu estudasse além do quarto ano de grupo. Mas eu tanto bati o pé, reclamei e questionei que minha mãe e meus tios acabaram o convencendo a me deixar estudar. Eu me formei professora não por vocação, mas porque era a única opção que me restou. Eu lia e me interessava por assuntos que não eram pra mulher, muitas vezes tinha que ler escondido de meus pais.

Comecei a trabalhar como professora e comecei a namorar aos vinte anos. Eu me apaixonei por meu namorado e como nunca aceitei menos que tudo, eu me entreguei a ele. Como ainda era muito ingênua, logo engravidei. E naquela época o rapaz tinha que reparar o suposto mal que fez à donzela, que de mal não tinha nada. Eu era uma mulher saudável e gostava de sexo. Ele me fez muito bem.

Casamos. No princípio tudo foi lindo. Mas ele me proibiu de trabalhar na escola e aí já me contrariou. Mas aceitei. Eu estava muito apaixonada e quando nosso filho nasceu eu quase dei razão ao ele. Queria ficar sempre junto daquela coisinha tão frágil.

O tempo foi passando e meu marido foi mudando. Pensava que podia ficar pelos bares após o trabalho, bebendo e se envolvendo com outras mulheres. E aquilo não servia pra mim. E as brigas começaram. Ele chegava bêbado e meu amor foi se acabando.

Quando meu filho estava com cinco anos, meu marido me agrediu pela primeira vez, o que resultou em um olho roxo e vários machucados pelo corpo.

Eu disse a ele que aquela seria a primeira e última vez. Se ele tentasse me bater novamente eu iria reagir.

E ele tentou. Eu já estava prevenida e bati com toda força na cabeça dele com o rolo de macarrão. Ele caiu desmaiado e a cabeça sangrando.

Mandei chamar meu pai. Disse a ele o que fiz e disse que não apanharia nunca mais e que da próxima vez seria pior.

Depois de muitas acomodações nós nos separamos e eu voltei pra casa de meu pai que pensou que podia me controlar.

Mas eu era rebelde e queria namorar, ter minha vida, trabalhar. E batia de frente com meu pai. Depois de muitas brigas e de eu sempre transgredir, segundo ele, meu pai me internou em um manicômio. E ali eu viveria o inferno. Fui submetida a choques elétricos, medicamentos incapacitantes e muitas humilhações pois eu não cedia à vontade deles. Até que eu entendi que algumas vezes eu precisava dissimular pra que me deixassem viver. Voltei pra casa, mas demorei pra voltar ao normal. E acabei entrando num acordo com meu pai. Ele me deixava trabalhar e eu mostrava menos a minha rebeldia.

Ali naquela pequena cidade eu era rotulada como mulher fácil, mas eu nunca fui uma mulher fácil. Eu me entregava ao meu namorado e não a qualquer um como eles diziam das mulheres que chamam de fácil. Eu sempre gostei de sexo e sempre acreditei que as mulheres têm as mesmas necessidades e vontades que os homens e nunca achei justo que fossem reprimidas e privadas de ter sua sexualidade satisfeita.

Fui juntando meu dinheiro e um dia fugi com meu filho pra capital. Lá eu trabalhava e fui cursar uma faculdade. Escolhi Direito pois eu amava a justiça, mas não sabia que nem sempre as leis são justas. Meu filho estava com onze anos e eu dava um jeito de conciliar a sua criação com o trabalho e a faculdade. E ainda tinha tempo pra namorar, já mais esperta e me cuidando para não ter uma gravidez indesejada. Meu pai rompeu comigo e fazia tudo pra me prejudicar. Não sei como um pai podia fazer isto.

Eu lutei muito, mas me formei.

Comecei a advogar, mas nos idos de 1970 ainda havia preconceito e discriminação contra a mulher em todas as áreas. Eu enfrentei tudo de cabeça erguida. Eu precisava ser sempre muito boa e muito melhor que os homens pra poder me firmar no mercado da advocacia. E foi o que fiz. Comecei a brilhar, mas mesmo assim muitos machistas, tanto machistas homens como mulheres deixavam de me contratar por eu ser mulher. Mas eu fui me firmando e falava de igual pra igual com qualquer advogado do sexo masculino. Raramente eu perdia uma causa e por isto fui ficando conhecida e respeitada.

Quando meu pai passou por dificuldades financeiras e problema de saúde, fui eu que o socorri. Nunca guardei mágoa.

Criei sozinha o meu filho e ensinei a ele tudo em que acredito. E ele se tornou um homem que respeita as mulheres, que luta por justiça, que ouve o seu coração e vive intensamente com responsabilidade e equilíbrio, com limites e caráter. Ele se apaixonou também pela advocacia e se tornou um advogado brilhante.

Eu vivi intensamente a minha vida. Não me arrependo de nada. Passei por muitas dificuldades, dores e tormentas por ser como eu sou. Mas se pudesse recomeçar faria tudo igual, por que vivi da maneira como acreditava que tinha que ser.

Eu me fiz forte onde tudo era covardia.

Eu resisti onde tudo era força bruta.

Eu conservei o amor onde tudo era ódio.

Eu mantive a calma onde tudo era caos.

Eu fui compaixão onde tudo era crueldade.

Eu sobrevivi onde tudo era devastação.

Eu fui autêntica onde tudo era hipocrisia

Eu ouvi e segui meu coração onde tudo era tirania.

-Que linda história de vida, D. Clarice! Estou emocionada.

-Eu dou um conselho pra você que é uma jovem tão sonhadora, tão gentil e atenciosa comigo, tão cuidadosa no trabalho de me fazer companhia: aconteça o que acontecer, sempre ouça o seu coração. Só ele jamais vai lhe dar maus conselhos ou lhe desviar do caminho que convém. A vida é muito curta e não vale a pena se corromper. Seja você ainda que o mundo tente fazer de você o que ele acha melhor. Nem sempre o caminho é fácil, mas a alegria e o prazer de ter resistido, de não ter traído seus princípios e suas crenças vale qualquer luta. Mas não tenha medo e nem seja orgulhosa quando achar que deve recuar ou mudar suas crenças. Mudar não é sinal de fraqueza e sim de maturidade e coragem. Dar um passo atrás muitas vezes abrevia o caminho e apressa o resultado.

Seja sempre feliz pois pessoas amargas e infelizes só conseguem infernizar a vida de outras pessoas ao seu redor. A gente só pode dar o que tem.

Ela me deu um abraço que parecia do tamanho do mundo, um abraço que eu sei que me deu força pra seguir o seu conselho.

Dias depois ela faleceu. Sem dor, sem aflição, sem sofrimento. Seu coração que já estava tão fraco e cansado apenas parou de bater e aquela mulher maravilhosa deixou a vida e alçou voo. Foi brilhar em outras paragens. Onde quer que esteja, com certeza continua a ser a mulher altiva, autêntica, forte, amorosa e rebelde que sempre foi.

Dez anos se passaram desde que ela se foi. Hoje eu estou com trinta e oito anos, casada, mãe de dois filhos. Sempre que eu tenho medo, dúvida, desânimo, sonhos, anseios e ansiedade eu me lembro da sua história e do conselho que ela me deu.

Fecho meus olhos, vejo a sua imagem, silencio minha mente e ouço meu coração. Acalmo minha alma e sigo em frente.

Sei que minha vida foi muito mais fácil por tê-la conhecido e por seguir seu conselho.

Faço uma oração por ela e lhe digo o quanto eu lhe sou grata.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 05/06/2023
Reeditado em 05/06/2023
Código do texto: T7806348
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