Desarmado - reeditado
Desarmado
Eu estava a uns trinta minutos de Miami Beach, mais precisamente no bairro de Wynwood. Estacionei na calçada, entrei na primeira loja que encontrei.
- O senhor tem um revolver? – perguntei ao balconista. O homem me olhou espantado. Além de mim, somente dois clientes estavam no local. Uma senhora olhava uns chapéus na vitrine interna à minha esquerda e, no meio do salão, onde era um corredor ladeado de grandes malas coloridas um senhor de uns quarenta e cinco anos abria uma delas e olhava por dentro, examinando cada compartimento. O balconista falou, a essa altura já um tanto avermelhado com a minha pergunta.
- Como assim, um revolver? Nós não temos isso aqui, somos comerciantes de artigos de couro, como o senhor pode ver.
- Peço desculpas. Não consegui controlar meus pensamentos; venho pensando em cometer suicídio desde que me levantei essa manhã e, como estamos em um país onde as vendas de armas são liberadas, eu quis resolver essa questão antes que entrasse a tarde e já é quase meio dia, não? Sequer percebi que aqui não é uma loja de armas; é que são tantas nesse bairro! De qualquer maneira, muito obrigado por sua atenção. E já ia me virando para deixar o local, mas o moço me segurou pelo braço antes que eu saísse de seu alcance.
- Hei, pelo amor de Deus! O senhor estava falando sério? O que está pensando em fazer? E por quê?
O rapaz estava tão nervoso que não percebeu a senhorinha a sua frente balançando um dos chapéus que tirara do mostruário e indagando-lhe o preço. Sem tirar a mão que segurava com alguma força o meu braço, respondeu qualquer coisa e voltou para mim. A mulher nos deixou e se dirigiu a uma funcionária que acabara de sair de trás do balcão para atender ao sinal do outro freguês que a chamava de longe. Mas, voltando ao balconista e eu, ocorreu o seguinte diálogo:
- Ouça, não quer conversar um pouco? Estou saindo para o meu almoço; não gosto de comer sozinho e estou precisando de uma companhia para desabafar um pouco, tenho uns probleminhas.
- Não me diga que está também querendo se suicidar.
Esta frase conseguiu tirar um sorriso bem expressivo do rosto do balconista. Era, na verdade, o gerente daquele estabelecimento e o filho do proprietário do negócio, segundo contou-me, enquanto caminhávamos para o restaurante. Aquele lado da rua era o mais movimentado devido ao grande número de lojas. A calçada não era larga o suficiente para a quantidade de pedestres e por isso nós não andávamos lado a lado, mas um na frente do outro. Senti, na sua forma bem humorada de falar que se esforçava em desviar meus pensamentos para coisas alegres, mas eu parecia alheio a isto. Em mim já se havia formada a decisão de dar cabo da própria vida. Ao entrarmos no restaurante percebi que estava em companhia de alguém muito influente e carismático. Quase todos o conheciam, porteiro, caixas, garçons e alguns clientes. Foi-nos oferecida uma mesa ao lado da janela. Antes que um casal se aproximasse de nós ele tocou-me no braço disfarçadamente e me perguntou com alguma rapidez:
- Como é mesmo o seu nome? – procurou falar isso sem mesmo mexer com os lábios. – Eu, mais que depressa respondi.
- Olá, como vão? Quero apresentar o Mauro, velho amigo de faculdade. Há anos não nos víamos. – após alguns minutos, que me pareceram horas, o casal nos deixou, talvez antes do que queriam e satisfeitos por verem-se livres da minha cara de poucos amigos.
- Meio dia e vinte – eu disse, após consultar o celular e completei: - Só está conseguindo adiar um pouco a minha intenção – eu disse, sem olhar diretamente para ele, mas para o movimento do recinto que só aumentava.
Agora, preciso explicar o que me levou a essa triste decisão.
Sempre fui bem sucedido em tudo que fiz até o momento em que quebrei pela primeira vez na vida. As falhas e fracassos ocorridos até então eram aceitáveis por uma personalidade tão resiliente quanto a minha. Eu mesmo não tinha certeza, não era como eu pensava; acho que se eu fosse forte o suficiente não teria vacilado em negar aquele empréstimo e continuaria, por baixo, adequando meu padrão de vida aos minguados seis salários mínimos mensais que passei a retirar da empresa.
Pode parecer arrogância da minha parte, mas para quem ultrapassara de longe o primeiro milhão de faturamento mensal com 60% disso liquido na conta para fazer o que quisesse e, de uma hora para outra ter que examinar a outra ponta do cardápio ao pedir um prato que poderia não caber no orçamento, o golpe é duro de aguentar. Os bancos viviam me cobrando dia e noite, o telefone passou a ser o meu pior inimigo; as mensagens na minha caixa e as faturas chegando tiravam-me o sono e o apetite. Minha dívida alcançou, em fevereiro de 2016 oito milhões e meio de reais. Adoeci, perdi 13 quilos em poucas semanas e para culminar com tudo isso, como se já não bastasse, minha mulher pediu o divórcio.
- Sou um homem arrasado. Você não vê o que estou passando? Pensei que nosso amor seria suficiente para superar essas coisas; que poder elas podem ter sobre nós?
- Desculpe! Não consigo ver dessa forma. Não é apenas por isso; umas coisas vão se juntando a outras. Há três anos estamos casados e nada de filhos. Parece que você não se interessa, estou de saco cheio das suas desculpas. E agora, essa queda amarga em nosso nível social. Não frequento os mesmo lugares, minhas amigas não são as mesmas. Já tomei minha decisão.
Não deu outra, perdi-a para outro homem, o que eu já vinha desconfiando. Amava-a perdidamente. Carla sempre fora minha fortaleza nos últimos três anos em que comecei a cair. Por que eu não conseguia dar-lhe um filho se meus exames não apresentavam problemas? Chego a pensar que eu é que devia estar sendo enganado e vítima de uma trama para acabar em separação. Meu fracasso foi a gota d’água, ela amava outro homem e aproveitou a situação para me deixar.
- Sou um homem acabado – falei ao rapaz que ouvia atentamente sem desviar sua atenção e seus olhos de mim. O único gesto que ele fazia enquanto eu falava era o de trazer até à boca a colherinha com o sorvete de coco, saboreando-o muito lentamente enquanto me ouvia. – então é isso, meu amigo, agradeço muito sua preocupação comigo, mas é o que decidi e o que vou fazer – e preparei-me para levantar, pousando a xícara ainda com um restinho do café que vinha tomando.
- Não vai não – ele disse num tom de tamanha segurança e firmeza que mexeram comigo. Novamente aquele gesto de segurar meu braço, impedindo meu movimento. Será que um anjo descera do céu para salvar uma alma perdida? Um anjo, não, mas alguém muito rico e influente ali estava.
O trabalho que Valdecir, meu amigo misterioso, tinha na loja do pai era para ele um passatempo. Passava ali umas poucas horas do dia, já que o que fazia deixava-lhe tempo mais do que suficiente para levar uma vida realmente livre e afortunada. Desde os 16 anos envolvera-se no marketing digital e já possuía, aos 26, sua idade atual, mais de 20 fontes de renda, a maioria delas provindas da internet. Tudo o que fazia era administrar os negócios e orientar sua equipe a fazer as coisas que ele já dominava e tudo ia de vento em popa; o faturamento, como renda passiva era milionário, só fazia crescer e, aquele dia, que seria o meu último nesse mundo foi, na verdade o meu renascimento para uma nova fase, ainda mais gloriosa.
Não vou negar que tive sorte, muita sorte. Pedi mais um café e ele mais um sorvete e continuamos a conversar. Sua proposta era simples: pagaria parte da minha dívida e eu chefiaria uma de suas equipes, aplicando minha experiência. Não deu outra, prosperei novamente. Em dois anos tornei-me novamente rico e sócio de Valdecir, ou melhor, do meu anjo duplamente salvador. E o melhor aconteceu. Fui pai pela primeira vez e com alguém que realmente me ama e, espero que continue me amando se eu cair novamente. Mas isso eu não espero. É melhor que não.