O Idiota
Naquela manhã nublada, Alfredo acordou em crise. Levantou-se primeiro que a esposa - algo que nunca fazia - preparou o café e começou a andar, ininterruptamente, de um lado a outro pela casa. A não resistir o silêncio sepulcral ao que acometia a casa, decidiu-se despertar a mulher.
- Heloísa - chacoalhava-a -, levante-se! Já são seis horas!
- Só me levanto às sete, Alfredo - virou-se ela para o outro lado. - E você também, volte para a cama. Esquente-me!
E tornou a se cobrir. Alfredo fitou-a por um quarto de segundo a se acomodar e calar- se, e tornou a chacoalhá-la.
- Heloísa, precisamos conversar - exclamou.
- A essa hora, porra? - sentou-se ela à cama, a bastante piscar por conta da luz.
- Pois - assentiu ele.
A mulher pôs-se a escutar suas lamúrias, pensando antes que queria ele falar de sua relação que esfriara havia já alguns meses.
- Você reparou como venho a me tornar um idiota? - inquiriu ele. - Nós não saímos mais, só penso em dinheiro; minha vida se resume a isso! Há quanto que não lemos poesia durante a madrugada? Nem terminamos aquele livro de Francisca Júlia! Ando muito triste, amargurado comigo mesmo, sinto no fundo de meu ser que a mediocridade está atingindo o meu limite.
- Qual o próximo passo? - perguntou ela.
- O suicídio, talvez - replicou ele, numa só tacada.
Ela deu de ombros. Pensava estar o marido a fazer um dramalhão. Já haviam tido outra conversa afim, mas de nada adiantou-se. Quando em vez inventava ele de fazer uma sessão entre os dois, regados a Eisenstein ou Coppola, e a discutir superficialmente alguma peça teatral de Molière.
De uns tempos para cá, a leitura de Alfredo diminuiu-se. Via Heloísa devorar os Ensaios de Montaigne e as obras dos gregos com incrível velocidade e facilidade de compreensão. Percebia a esposa mais feliz que si mesmo - e um leve incômodo começou-lhe a perturbar e a inculcar-lhe ideias estapafúrdias.
- Você tem um amante, não é? - inquiriu ele a ela, certa noite, enquanto jantavam, a romper com o silêncio.
- Do que você está falando? - encarou-o Heloísa, a espetar uma batata cozida no prato.
- Por que você anda tão feliz?
Ela franziu o cenho, a elevar o sobrolho.
- Feliz? Você sabe que eu não acredito nessa bobagem burguesa de felicidade - replicou ela. - Ademais, não preciso de amantes. Tenho você!
- Mas eu sou um reles, um medíocre, não tenho muita serventia a você - replicou ele, a não disfarçar as lágrimas que escapavam dos vãos dos olhos. - Você deveria ter um amante! É tua obrigação! Estou a te ordenar!
- E desde quando você manda em mim?
Alfredo relevou o tom. Mexia com o garfo, com movimentos agitados, entre as batatas e os brócolis no prato.
- Sabe de uma coisa, Alfredo? - rompeu ela, com o silêncio. - Acho que estou a começar concordando com você.
Ele requisitou-a o por quê.
- Está mesmo a se idiotizar - falou ela, a posicionar o garfo e a faca à esquerda do prato, como que enfartada da refeição. Bebericou o suco de tangerina - que no fundo detestava, só o fazia para agradar o marido - e continuou: - Está a se tornar um chato de galocha!
Então, levantou-se e deixou-o a sós sobre a mesa, a refletir.