Dr. Elivelton

 

 

O GÊNESIS

 

Início da década de mil novecentos e noventa. Em um subúrbio qualquer nascia Elivelton. Filho de pais amorosos, era uma criança feliz, saudável e esperta. Seus olhos, brilhantes e expressivos como as jabuticabas maduras, faziam do menino um conquistador nato, mesmo antes de pronunciar qualquer sílaba.

 

Quando descobriu as palavras, Elivelton não deixou por menos. Aos quatro anos, já era dono de um vocabulário que lhe garantia uma boa comunicação, o que fazia com raríssimos erros de pronúncia. A incorporação do regionalismo à fala clara e a facilidade de traduzir conceitos complexos em ideias compreensíveis aos da sua comunidade seriam as marcas que lhe abririam portas e fariam dele um líder respeitado entre os seus.

 

O menino tinha nos pais os seus heróis de carne e osso. Eram trabalhadores que se esforçavam bastante para que vivessem com dignidade e tivessem todo o conforto possível. Os finais de semana em companhia deles eram muito divertidos, tanto faz se ficassem em casa ou se saíssem para alguma festa, para visitar um parente ou passear pela cidade, que o pai conhecia como ninguém.

 

O pai, motorista de táxi, contava ótimas histórias dos poderosos da zona sul que o chamavam para levá-los ao aeroporto ou aos diversos arranha-céus espalhados pela cidade. Às vezes transportava algum artista ou jogador famoso. Quando isto ocorria, mesmo que a viagem tivesse sido silenciosa e o passageiro em questão não tivesse passado uma imagem simpática, ele inventava uma história para contar vantagem ao filho. Em dias de sorte, conseguia até uma foto com uma celebridade mais simpática. Vários desses passageiros tornaram-se clientes fiéis, cujas secretárias já tinham à mão o cartão do taxista para chamar sempre que necessário.

 

Elivelton imaginava que todas as secretárias eram parecidas com a sua mãe, que trabalhava em uma clínica médica e dizia fazer e receber muitas ligações importantes. Ela estava normalmente linda, com tranças e brincos coloridos, bolsa grande, uniforme bordado, salto alto e um sorrisão vermelho que espantava qualquer mau-humor. Nos dias de folga, seu maior prazer era ouvir músicas e cantar nas festas para as quais era convidada. Dona de um tremendo vozeirão, é uma pena que não tenha ficado famosa.

 

E foi esbanjando saúde, sagacidade e dentes brancos num sorriso fácil, que Elivelton chegou à escola. Foi matriculado num colégio público do bairro vizinho porque este ficava perto do trabalho da mãe, facilitando assim a logística da família.

 

Como já era de se esperar, o menino se adaptou rápido e logo chamou a atenção dos professores pela rapidez com que absorvia os conteúdos. Nada indicava que seria um gênio da matemática, no entanto a sua facilidade para interpretação e compreensão dos enunciados era suficiente para que desenvolvesse bem as atividades. Nas artes, ele compensava a sua falta de talento para trabalhos manuais com a qualidade dos desenhos que fazia. Mas era na produção textual que Eli, como passou a ser chamado pelos colegas, se soltava, criando histórias com um grau de complexidade bem maior do que os demais eram capazes de fazer.

 

À medida que as semanas foram passando, Eli se tornou o destaque da turma e, como sempre acontece aos que se destacam, logo vieram os ataques.

 

O ÊXODO

 

Na comunidade o ambiente era culturalmente muito rico, colorido e plural. Lá havia a turma da capoeira, a turma do grafite que enfeitava os muros, as escadas e ainda escreviam as fachadas dos empreendimentos locais. Havia ainda os músicos, que ensinavam a tocar violão, teclado e percussão. Outros eram gênios na arte de rimar as palavras no melhor rap ou black soul e, claro, a turma cantava e dançava muito! Final de semana era sinônimo de festa.

 

O pessoal dali fazia render o fruto do seu trabalho circulando o dinheiro dentro da própria comunidade. Sendo assim, podia-se recorrer aos serviços da costureira, do sapateiro, do barbeiro, da moça que fazia as melhores tranças, da melhor manicure, do cara que vendia frutas, do moço do açougue, da família dona do mercado, da mulher que fazia o queijo ou que produzia as melhores hortaliças. Portanto, aqueles que saíam para trabalhar fora da comunidade, como os pais do Elivelton, garantiam, com parte do que ganhavam, o sustento daqueles que permaneciam dentro do bairro.

 

Crescendo nesse ambiente de cooperação, onde as pessoas se unem para aliviar a carga uns dos outros, Elivelton não entendia que algumas das restrições sofridas por aquela gente estavam relacionadas à cor da pele. Ali no bairro podia-se contar nos dedos quem não era negro e, mesmo estes, não eram necessariamente brancos, ele inclusive. No entanto, a cor nunca havia sido uma questão na sua vida até então.

 

Na escola, as manifestações de inveja dos colegas de classe o levaram a ter o primeiro contato com o preconceito racial. Ali, num bairro de maioria branca, o menino descobriu que a melanina não apenas tingia a sua pele de preto, mas o marcava no mundo como alguém que devia ser tratado e se aceitar como um ser inferior.

 

Não demorou para que os colegas espalhassem entre si que Eli era filho da mulher das tranças coloridas que trabalhava no consultório que ficava na rua atrás da escola. Fizeram do estilo black da sua mãe assunto e motivo de deboche. Se fazia calor, falavam que o menino estava fedendo, se chovia, zombavam dizendo que o cabelo dele não molhava, por isto não precisaria de um guarda-chuva. Não importava a estação, sempre haveria um motivo para zombarem do Eli e das suas origens. As piadas racistas que faziam explodir o riso da maioria, constrangia alguns e atingiam em cheio o menino, que estava decidido a lutar contra aquilo.

 

Mesmo sofrendo com os ataques, Eli se mantinha firme, ano após ano. À medida que o tempo passava, foi conquistando o respeito de alguns da turma. A sua inteligência atraía os aproveitadores, que o desejavam nos grupos de trabalho. A sua educação no trato com as pessoas desarmava outros que, a partir da sua postura, enfrentavam o desafio de repensar o próprio preconceito diante dos demais. Os olhos de jabuticaba, assim como as suas qualidades em evidência, eram uma arma perfeita de conquista, garantindo boas paqueras.

 

No coração, o que Elivelton mais desejava, enquanto se tornava um homem, era fazer o curso de Direito e usar os seus talentos naturais de comunicação e oratória em favor dos negros que, todos os dias, eram vítimas de um preconceito nem tão velado assim.

 

Com louvor, passou no vestibular para entrar na faculdade. Se inscreveu pelo sistema de quotas, afinal de contas este era um direito seu e se permitiria usufruir dele.

 

AS CRÔNICAS

 

Os perrengues passados no colégio e nas primeiras inserções pelo circuito jovem da grande cidade mostravam nitidamente a Elivelton que a vida de um negro no Brasil nunca seria fácil. Ter a pele preta significava que era preciso dar muito mais de si do que um de pele branca para ter acesso às mesmas coisas. Era necessário se acostumar aos olhares de desconfiança, à coincidência do segurança do supermercado sempre andando nos mesmos corredores que o seu, à revista mais rigorosa na entrada da balada, à recusa do motorista de aplicativo quando vê, às 11 horas da noite, que a corrida partindo do campus da Universidade Federal é para um bairro da periferia.

 

Dos tempos da infância feliz e despreocupada, alguns amigos não conseguiram resistir à pressão. A vontade de usar um tênis de marca, de ter a jaqueta da moda ou de desfilar com o smartphone do momento fez com que entrassem para o mundo onde o legal é relativizado e os meios se justificam pelos fins. Destes, uma parte viu a luz do sol se apagar antes mesmo de vislumbrar um futuro, outra parte tenta se recuperar em templos, clínicas ou cárceres. Há os que seguem sem rumo, adolescentes que já educam seus filhos, meninas machucadas pelo playboy que desapareceu sem deixar vestígios de suas vãs promessas. São muitas histórias...

 

Como ele, uns poucos se agarraram aos estudos para abrir, à força, as portas da esperança e da oportunidade. Outros conseguiram ressignificar a existência através da arte ou do trabalho duro, honesto, mesmo sem perspectivas de uma mudança de patamar. Repetiriam assim o ciclo dos seus avós, dos seus pais e deixariam a luta inglória de herança para os filhos. Resignados, muitos passaram a sonhar mesmo foi com a glória de um paraíso vindouro numa vida depois desta.

 

Não foram poucas as vezes que encontrou a mãe de olhos úmidos pelos desaforos que ouviu de algum paciente da clínica, que descarregou na cor de sua pele a culpa pelo atraso da consulta. Ela sabia que os médicos muitas vezes interrompiam o fluxo dos atendimentos para priorizar algum representante da indústria farmacêutica ou para resolver problemas pessoais, porém ela não podia ser ríspida com os pacientes. Procurava tranquilizar os mais exaltados, enquanto guardava na alma mais um desprezo. Nas poucas vezes que tentara conversar com alguns médicos sobre uma melhoria na organização das agendas, não foi ouvida. A sua função era atender bem a todos e manter a paz da sala de espera, pois eram aqueles clientes que pagavam o seu salário. Ela entendeu que não tinha o direito de propor alterações na forma de atuação dos deuses que ocupavam os consultórios.

 

Elivelton já não precisava das histórias inventadas pelo pai para admirá-lo. Respeitava-o muito mais e o enaltecia como um super-homem por saber da dura realidade por detrás daquele volante. Agora conhecia as histórias reais do desprezo sofrido pelo seu velho por causa da arrogância de alguns passageiros. Muitas vezes o pai engolia calado a dor pelo tom de superioridade de alguns medalhões que se tornaram clientes fiéis por considerá-lo simples, humilde, cordato. Um bom vassalo. Houve ocasiões em que havia ido ao aeroporto para atender a um chamado e fora dispensado pela socialite de olhos azuis e joias valiosas, pois esta não desejava que aquele negro descobrisse o seu endereço. Mas para quem tem um filho crescendo e contas a pagar, o jeito é esperar o próximo passageiro, torcendo para ser uma corrida tranquila, sem sobressaltos nem assalto.

 

Na faculdade de direito, Eli conseguiu conquistar o seu espaço usando das mesmas habilidades que já havia usado nos tempos de colégio. Destacou-se pela inteligência e pelo fino trato com todos. Mesmo quando era atacado com notas sutis de preconceito, agora não tão explícito, devolvia com a mesma ironia refinada que a vida lhe ensinara.

 

Elivelton era o único negro da sua turma e percebia claramente que, no início do curso, era visto com certo desdém pelos colegas e pelos professores. Além da sua capacidade intelectual e seu jeito naturalmente cativante, soube renunciar a alguns desejos para ser aceito no círculo dos doutores e dos futuros colegas de profissão, como ter um cabelo no estilo afro ou usar brincos. Acostumou-se a usar roupas discretas e manter um estilo padrão. Entendia que era preciso ceder para sobreviver.

 

Ao final de dez semestres e recém-aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr. Elivelton Oliveira da Silva, enfim, poderia se dedicar à sua causa.

 

BOAS NOVAS

 

O doutor Elivelton Silva, muito articulado e bem recomendado por sua dedicação aos estudos e pelo bom desempenho nos estágios realizados, logo conseguiu emprego num importante escritório de advocacia que contava com grandes e médias empresas na carteira de clientes. Estas contratavam o serviço dos advogados para defesa de causas trabalhistas que envolviam os cargos gerenciais e executivos, além da elaboração e verificação dos documentos de aquisições ou vendas de ativos. Como bem sabia, o seu desempenho em cada processo era cruelmente comparado ao dos colegas. Mas este era um monstro que já estava acostumado a derrotar.

 

Como qualquer pessoa que consegue vencer na vida e realizar-se financeira e profissionalmente, Elivelton também tinha sonhos materiais, como morar numa cobertura bonita e comprar um carro do ano. Para realizá-los, concentrou todas as energias nos primeiros oito anos de profissão. Ainda reformou a casa dos pais, que não quiseram mudar para a cidade, até para que o filho vivesse as suas próprias experiências e ganhasse independência.

 

Além dos sonhos materiais, o agora doutor assumiu a responsabilidade jurídica de alguns projetos sociais do seu lugar de origem. A comunidade precisava de iniciativas bem estruturadas em termos jurídicos para ter o direito de inscrever projetos e obter verbas oficiais, além de ganhar legitimidade para buscar patrocínios na iniciativa privada. As ONGs eram portais que davam às crianças e adolescentes o direito de sonhar com um futuro digno. Num médio prazo, a realidade de cada família seria muito diferente da atual.

 

Enquanto se dedicava aos projetos sociais e cuidava dos processos do escritório, Elivelton cuidava também da sua vida pessoal. Frequentava uma academia próxima ao condomínio, ia em boas baladas e engatou relacionamento com um recém-empossado juiz federal, morador de uma área nobre da zona sul. Juntos planejavam viagens pelo Brasil e, futuramente, ao exterior.

 

Tudo estava indo de vento em polpa. À vontade no mundo dos brancos, frequentando lugares cada vez mais elitistas, amando e, aparentemente, conquistando o respeito que sempre almejara, Elivelton estava no seu melhor momento. Sempre que podia ia almoçar com os pais e os levava para passar finais de semana ou feriados em algum lugar bonito onde pudessem descansar.

 

APOCALIPSE

 

Os projetos na comunidade estavam progredindo. O lugar da sua infância estava sendo transformado para melhor. Ele também. Os seus olhos, como as jabuticabas maduras, brilhavam ainda mais com cada bolsa de estudos que conseguia, com cada jovem que encontrava um bom caminho nas artes e brilhavam ainda mais quando outro guerreiro que havia descido o morro voltava, como ele, realizado e somando forças na luta por benfeitorias.

 

A vida, no entanto, a cada um sempre reserva um dia para revelar qual é o seu real lugar no mundo. Para Eli, foi o final de uma sexta-feira.

 

Às sextas Elivelton não ia para o escritório em seu carro, pois geralmente acontecia um happy hour com a turma e ele, prudente, não dirigia depois de consumir bebidas alcoólicas. Naquela noite não seria diferente.

 

Como gostava de usar trajes informais nestas ocasiões, colocou na mochila um boné, uma bermuda e uma camisa polo. Levou ainda alguma outra roupa, já que não voltaria para casa naquela noite. Já tinha um tênis guardado no escritório para este fim. Ao fim do expediente, foi com a turma para um bar próximo e, saindo de lá por volta das dez da noite, chamou um carro de aplicativo para levá-lo até a zona sul.

 

Pensando em não chegar à casa do namorado de mãos vazias, desembarcou em frente à confeitaria, a dois quarteirões do prédio, e comprou algo para comerem juntos. Respirava com calma em direção ao destino, aproveitando a pequena caminhada. Despreocupado, soltou uma das alças da mochila a fim de facilitar a retirada das chaves do bolso externo. Não percebeu um carro importado, de vidros escuros, parado próximo ao edifício. Quando levantou a cabeça, teve a impressão de ver o vidro do carro abaixando. Não viu muito mais.

 

E então Elivelton entendeu que nunca passara de um preto no meio dos brancos. Enquanto o peito ardia e jorrava sangue quente, compreendeu que nunca o aceitaram de verdade. Fechando os olhos, soube que preto, de bermuda e boné não podia abrir uma mochila perto de um carro tarde da noite. Era sempre assalto.

 

A notícia em todos os portais, os protestos nas redes sociais, o luto de um dia no escritório e as passeatas na comunidade ou na zona sul, apenas alimentariam as estatísticas e promoveriam populistas. Para um preto, usando bermuda e boné, não adiantava portar credencial da OAB. A carteira seria a última coisa a ser verificada.

 

 

Imagem: Gisely Poetry

Jefferson Lima
Enviado por Jefferson Lima em 27/05/2023
Código do texto: T7798789
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