Educação sentimental
Educação Sentimental
Na formação principal do Kid Abelha tinha Paula Toller, Leoni (até 1986), George Israel e Bruno Fortunato, em 12 maio de 1985 eles laçaram o álbum de estúdio Educação Sentimental, 15 de janeiro: Tancredo Neves é eleito o presidente do Brasil por 480 votos contra 180 de Paulo Maluf na eleição presidencial indireta, que dá fim ao Regime Militar. É nesse clima de otimismo politico que esta singela história de amor vai ocorrer, sacramentada no coração desses românticos em 2005.
Roni estava muito bêbado, tinha farofa no bigode, sentou na areia de frente para o mar, olhou para os amigos da sua mesa de anatomia, lá no comecinho do curso, os que sobraram quando o chefe do departamento de anatomia, um senhor de barba encardida por nicotina, alto, careca e de pele pálida, falou:
-Agora vocês podem se juntar por afinidade. - Eles estavam em ordem alfabética, em dez minutos sobraram eles, um em cada canto, soltos sem órbita, os outros se ordenaram e já conversavam como velhos amigos.
Fim da festa de formatura, clube Libanês que foi construído ao longo de 10 anos, entre 1952 e 1962, por 400 libaneses que se dedicavam apenas aos fins de semana, quando tinham tempo disponível, e utilizaram de recurso próprio para manter a obra.
O vento soprava forte às onze horas da manhã daquele domingo, a maioria dos futuros médicos estavam na areia, inclusive os rejeitados que formaram o grupo de rejeitados, lá atrás no primeiro ano: Maria Amélia, Roni, Fernanda, Jota e, com os pés dentro da água, Laura, a mais crítica, a mais séria e mais inteligente do grupo.
-Complicado – disse Roni – A farofa parece estar no meu corpo todo.
Jota sorriu, estava pensativo, a cabeça oscilava entre: amores possíveis e impossíveis, ainda estava com Fernanda, não tinha futuro, eles sabiam, porém um sempre foi uma ótima companhia para o outro, a ilusão amorosa de Jota era Maria Amélia, estupidamente focada na medicina, ela namorou uns dois meses com o Roni depois dedicou o seu precioso tempo ao estudo.
-Vai pra onde? - perguntou Fernanda.
-Qualquer lugar fora de Vitória – disse Jota.
Roni sorriu, era um cara bonito, habilidoso com as mãos, escolheu a neurocirurgia, porém no futuro isso não adiantaria, morreu em um acidente de carro na estrada para Mantena Mg, em 2001, bêbado, mataria mais três pessoas, dentre elas uma colega de turma.
Fernanda se tornaria mãe de uma menina, fez residência em cardiologia, dona de uma clínica, ninguém sabia nada da sua vida particular.
Os sobreviventes desse grupo estariam juntos em 2005 na premiação de Maria Amélia, endocrinologista.
O sol domingo 12 de janeiro1986 deixou a areia quente, Fernanda se aproxima e abraça Jota, seu perfume é agradável, muitos achavam que os dois se casariam, mas o desleixado Jota e a organizada Fernanda seriam apenas amigos, caminhos diferentes.
-A Laura tem meia hora que está parada lá com os pés na água - disse Fernanda – ela vai pra USP, oftalmo.
-E essa cara de velório da Laura? – perguntou Roni.
-Ela e a mãe discutiram – Fernanda falou baixando a cabeça.
-A mãe dela é evangélica, quer a Laura na cartilha, nenhum de nós vai seguir cartilha nenhuma, o futuro é liberdade para cometer os próprios erros - Jota falou fazendo uma careta, ele respeitava Laura.
-E você Jota vai fazer o quê? - Perguntou Roni atravessando o assunto.
-Pediatria.
-Ficou louco? Quer morrer pobre?
Jota levantou e foi até Maria Amélia, aquela conversa sobre residência médica estava cansativa, queria um papo melhor, para esfriar a cabeça, com alguém que tirava o fôlego, nesse momento Leoni cantava Educação Sentimental, a música vinha de dentro do clube.
-E ai meu Perrengue? – disse sentando na areia.
-Urum – ela sorriu – eu sei que sou o seu perrengue, parece que você é o da Fernanda ali ó! - ela apontou para a Fernanda.
-Ela está de boa. - disse Jota.
-E você?
-De boa, pouquinho de curiosidade.
-Com o quê?
-Quem é o seu perrengue, seria o Roni?
Ela riu e disse um “Deus me Livre”!
Ficaram sentados por meia hora um do lado do outro Jota sentiu o perfume de Maria Amélia que se misturava ao aroma da manhã libertadora, essa proximidade sempre deu alguma esperança.
Roni vomitou, eles levantaram para ajudar, Fernanda quando veio se despedir, tocou o ombro de Jota e falou:
-Amor é o que faz tudo durar– disse Fernanda.
Jota deu de ombros.
Em 2005, sentados um do lado do outro, aplaudindo a entrada de Maria Amélia na sala, ao escutar o discurso, Jota olhou em volta e não viu um casal sequer formado em 1986, Fernanda piscou pra ele.
-Nada dura, não naquela idade – ele disse.
Maria Amélia começou o discurso citando seu livro predileto:
“Porque eu nunca tive motivos para acreditar em nada que dure para sempre. Porque eu sempre fui tocada pelas mais diferentes formas de vida e por qualquer frase um pouco mais inteligente, porque dói entender que a posição da lua não interfere no quanto eu morro um pouco todos os dias” - fez uma pausa e enxugou as lágrimas—quero parar aqui, depois completo o pensamento desse lindo livro - Madame Bovary, escrito em 1857 por Gustave Flaubert. Jota e eles conversaram algumas vezes quando estudantes sobre aquele livro, que parecia ser muito mais um livro sofre liberdade feminina que sobre adultério.
Silêncio de alguns segundos e ela voltou a falar.
-Quero dizer que na minha vida tive muitas dificuldades, origem muito humilde, muito mesmo, pai operário mãe costureira, ser mulher, morte de amigos, o Roni meu Deus! – ela enxugou as lágrimas e continuou —, todas essas dores me ensinaram a valorizar o amor, então para receber esse valoroso presente que Deus me deu, tão importante pra mim – ela fez uma pausa, as mãos pareciam trêmulas, mudou a fisionomia, sorriu e pegou o livro – continuando aqui a minha parte preferida: “Porque eu acredito em tudo e isso de não descartar nada, me faz voltar para casa depois de me apaixonar a cada esquina, e querer uma cama só. Eu me machuco pra saber onde dói, mas hoje sei exatamente que parte de mim sente mais falta dela.” - Instante que Maria Amélia apontou no sentido de Laura.
-Doutora Laura Faustini, hoje, minha esposa.
Jota olhou para Fernanda ela estava com aquele ar de felicidade, próprio dela.
-Você sabia? - Fernanda sorriu suave, ela falou um: "eu te avisei o amor é o que faz durar", não importava mais, anos depois Jota encontraria o seu verdadeiro par, foi então que entendeu que a ilusão é nada perto de um amor concreto. Fernanda continuaria sua vida como cardiologista, sem dividir a sua vida privada, Maria Amélia e Laura viviam em São Paulo, essa foi a última vez que todos se viram.