A VALSA

A VALSA

- Eu era a bibliotecária deste rapaz na escola primária, embora apostasse que ele não se lembra – disse a mulher de cara empoada, apertando a mão de Dixie.

- Não me lembro! – disse Danny – Senhora Needham, claro que me lembro! – E riu-se, talvez alto de mais.

Houve mais troca de comiserações.Depois, Nancy Needham perguntou-lhe se tinha alguns conselhos a dar ao seu filho Nicky que se estava a candidatar à Faculdade de Direito.

- Diga-lhe que ele vai ter que absorver tanta informação inútil, que vai pensar que a cabeça lhe vai estoirar – disse Danny.

Ela riu-se.

- Não é assim tão diferente de ser-se bibliotecário, pois não?

- Querida, eu não podia fazer isso, a minha cabeça é um passador – disse Dixie. - _ Entra por um ouvido e sai pelo outro.Eu mal consegui passar no exame de condução.

David Leavitt in “Sentimentos Paralelos” (“Equal Affections”)

Ele tentara desde novo evitar, evitar,evitar.As situações desagradáveis, os acontecimentos dolorosos no afã de planear, antecipar e contrariar a eventual desdita.

Pinturas rupestres nas paredes toscas das grutas pré-históricas.O saldo dos filhos que não teve.A crença subestimada de que, a partir de certa idade, a vida seria como uma miragem num deserto sereno ou um lago,mais calma.

A tensão era evidente e ele nunca tinha imaginado essa cena.Tipo quando a enfermeira vem buscar a Blanche Dubois a casa da irmã para a levar para o hospício no fim da peça.

- Não queres fumar?

Pergunta-lhe ele para amenizar o ambiente naquela manhã com sol, recém chegados no transporte hospitalar depois de um exame a que ela se submetera e antes de rumarem ao tal lugar.

- Não é má ideia – responde ela com o seu ar altivo, o seu antigo ar de quem se julgava superior e conseguia com sucesso intimidar uns quantos.

Ele pensa: “Talvez lhe acalme os nervos”.Ele acende-lhe o cigarro com a mão a tremer.

Ela encosta-se ao carro, vencida, meia aniquilada a aspirar o fumo condoída e a gozar a vida numa sucessão de cigarros, enquanto ele arruma os sacos no porta bagagem.

Finalmente, partem e o silêncio instala-se confrangedor e pesado.

- Queres ouvir música?

- Se quiseres.O carro é teu!

Ele simultaneamente mal a tolera com o seu mau feitio, as suas paixões funestas, a sua injustiça, preguiça e descalabro mas admira-lhe a firmeza e o estoicismo.Fazer tudo em nome da família.A despeito de uma voz ancestral que lhe soprava “Famílias , odeio-vos!”André Gide ou outro num dos seus romances intensos.Os pôdres de “As grandes famílias” de Maurice Druon, a martelarem-lhe na memória.

Ele conduz sob stress pelo IP sempre a transbordar de trânsito.Tia e sobrinho distantes.Que mal se davam.Mal se falavam mas cujos percursos se cruzavam inevitavelmente, atravessando mortes de parentes, breves encontros em missas por alma e pouco mais.

E agora, ele, um homem feito, mais que maduro com a sua própria família e uma bio traçada e rasgada de infortúnios e lutas, atravessou a vila histórica, iniciou a descida pela serra, escarpada e verdejante, rumo ao destino, com ela ao lado.

Talvez os avós e a mãe o vissem lá de cima e lhe acenassem com um gesto comedido de aprovação “Sim, segue, sim, prossegue, é o melhor para ela, a única opção”.

Ele engana-se no percurso, volta para trás, contorna, tenta de novo e encontra o desvio.Seguem pela estrada.Confusa.Longa.

Por fim, os portões por graça divina estão abertos e eles entram.

- Vou avisar que chegámos.Só um momento.

A recepcionista simpática trata-o pelo nome,lembrava-se da véspera em que tinha lá estado a acertar os pormenores, a burocracia, os preços, as regras e uma subida fugaz para ver o quarto onde ela ia ficar, acompanhada “Vai ser um desafio.A Dona - não sei quantos - que vai ser a companheira de quarto da sua tia, também tem uma personalidade forte”.

A assistente social e uma outra senhora forte e possante e que se identifica como encarregada, uma espécie de capataz de serviço esperava-os ao cimo da rampa com um vasto relvado à vista e o complexo habitacional, por trás.

A vida é uma valsa em que se rodopia sem pausas e se acaba não se sabe onde.Num Lar, provavelmente.

Ela sai sem se despedir, com um olhar carregado de raiva,furiosa e revoltada “Porque é que me estão a fazer isto?” com zero gratidão pelo pesadelo que foi ter conseguido lugar e ela ser aceite.Ele tenta compreender, desdramatizar.Acena-lhe com a garganta sêca, o coração aos saltos e pensa “Se não fosse eu, ninguém mais se responsabilizaria e devo apenas aceitar este papel miserável de mau da fita”.

Ela fora bela, tivera dinheiro, viajara pelo mundo, nunca tivera que se sujeitar a nada nem ninguém.Até que a decadência e o envelhecimento chegaram inexoráveis e lentos e ela caiu no alcoolismo, na dependência de drogas, na consolação mútua com uma outra mulher desistente, a agarrar-se a um rochedo duro e nu,exposta, à mercê da crueldade selvagem e sanguinária do mundo.

Ele detestou tudo aquilo e engoliu a náusea, a vontade de vomitar no meio das ervas no caminho que se avizinhava.Voltou para a cidade a precisar de uma bebida forte, de um encontro que lhe ressuscitasse o espírito e de volta ao bulício da urbe, no meio da turba insensata reequilibrou e tentou aguentar a bofetada que ela lhe quisera dar mas que não dera.

Um drama insignificante e anónimo num mundo agonizante e feio.Ouvia a valsa a tocar em fundo, aspirava a descobrir um pouco de beleza mas o fim da tarde distraía-o enquanto ele conduzia, de regresso.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 25/05/2023
Código do texto: T7797404
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