“Ficarr Ixperto”

23.05.23

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Voltei a jogar polo aquático depois de 45 anos. Foi o meu esporte predileto dentre os que pratiquei. Mas agora, aos setenta anos, o corpo não corresponde ao que o cérebro comanda. Está usado e desgastado.

Tento executar as jogadas e arremessos que fazia naquela época, mas o fôlego, as pernas e principalmente os braços não respondem, e a bola, às vezes, não chega ao gol. Uma lástima, e fico bravo comigo mesmo. Sou exigente!

Um amigo me disse:

-Seu corpo tem setenta anos! O que esperava dele?

Após os treinos, volto para casa com os ombros doloridos e inchados, faço gelo e tomo dipirona para poder dormir. Fico o dia seguinte quebrado, às vezes na cama, mas feliz. Vale a pena o sacrifício e a satisfação de voltar a jogar.

É curiosa a minha história com o polo aquático. Quando menino era fanático por futebol. Jogava todos os dias, sem exceção. Era bom, e como meu ídolo, Pelé, pensava em ser um grande jogador de futebol. Meu pai desencorajou-me, dizendo-me que estava ficando com as pernas grossas e ombros estreitos - um corpo feminino. Deveria nadar ou jogar tênis para desenvolver os músculos dos braços e tórax.

Assim, me levou para treinar natação no nosso clube. O treino acontecia todas às manhãs cedo, de segunda a sábado. Eu não gostava muito de treinar, apesar de nadar bem.

Todos os dias acordava e olhava para o céu, e se haviam nuvens, chovia fraco ou garoava, não ia para o treino. Mas, ia para a rua para jogar bola com a molecada, ficando encharcado. Era uma farra!

Então, mudou-se para a casa em frente ao nosso “ campinho” na rua, uma família com duas filhas, uma delas uma deusa aos meus olhos de 14 anos, e que treinava noutro clube .

Começamos a nos relacionar e lhe disse que também praticava natação, mas que não gostava do meu clube. Convidou-me para treinar no dela como militante. Aceitei de pronto!

Íamos todas às manhãs caminhando naquela alegria juvenil de risos e trejeitos peculiares da idade. Eu estava enamorado. Mas, ela gostava de outro nadador e me desapontei quando vi seus olhares e sorrisos languidos para ele. A minha primeira frustração amorosa. Aliás, nunca mais a vi ou soube dela.

Desinteressei-me pelos treinos, comecei a faltar, treinar mal e fazer bagunça. Fui dispensado. Brioso, disse a mim mesmo: Ela vai ver quem eu sou! - voltando a treinar ferrenhamente no meu clube.

Empenhei-me de corpo e alma em tornar-me um campeão, mas não era o meu forte, pois estava já passando da idade, e meus tempos não eram competitivos para a minha categoria.

Em um sábado pela manhã, após treinar natação, estava sentado na mureta da piscina assistindo ao de polo aquático, esporte que achava violento pelas inúmeras brigas que com frequência ocorriam durante as partidas. Faltava um jogador em um dos times e me chamaram. Pulei na água e comecei a jogar como se já o fizesse há algum tempo. Ajudou-me o basquete, que brincava na escola com os amigos, jogando “21”. Detalhe: a bola naquela época era de couro, e molhada, pesava muito.

-Caramba, você joga direitinho, hein. Não quer treinar conosco? – disse-me um dos jogadores bem mais velho do que eu, após o treino.

Esquivei-me por um tempo das investidas do pessoal do polo, e como não tinha mais futuro na natação, comecei a jogar com eles. Estava com 17 anos.

Os treinos de polo ocorriam à noite durante a semana e aos sábados na hora do almoço. Pela manhã, nos dias da semana, treinava com a equipe de natação. Meu cabelo era duro e verde e meus olhos, sempre vermelhos – não havia óculos para nadar naquela época.

O jogo não era nadado como hoje, mas mais cadenciado, quase parado. Também, os jogadores não eram muito grandes e altos. Hoje, têm em média 1,90m de altura no mínimo. Éramos mais baixos.

Fui me destacando, pois era rápido nos contra-ataques, nadando em disparada, fazendo gols e subindo de categoria. Tinha um chute forte, e adorava jogar. Era o meu esporte, definitivamente.

Veio então um jogador húngaro para nos treinar – o país do polo aquático, como nós no futebol, e uma lenda nesse esporte. Jogou Olimpíadas e fugiu da Hungria para a Itália com a invasão russa e depois para cá. Foi considerado o melhor jogador do mundo e seu chute era fenomenal. Diziam que quebrou uma trave do gol com seu arremesso. Acredito, pois o seu tiro era muito forte e rápido.

Entrava na piscina para jogar conosco nos treinos. Calouro, eu era o saco de pancadas, e em um dia colocaram–me para marcá-lo na “banheira”, posição na qual o jogador fica de costas para a meta adversária para receber a bola e tentar fazer o gol ou sofrer a falta – era para ganhar experiência.

Era ele muito grande e forte, e quando lhe jogaram a bola, tentei ser mais rápido do que ele para roubá-la, mas agarrou com a mão esquerda os meus testículos e puxou, eu urrei, afundei e ele fez o gol. Depois me disse sorrindo com seu sotaque eslavo:

-“Ficarr ixperto!” - com todos os outros na água rindo também .

Treinei com ele até meus vinte e cinco anos, quando abandonei o polo aquático, decepcionado. Havia muita politicagem e “panelinha” no time – os mais velhos boicotavam os mais jovens, que tinham melhores condições físicas e aptidão, habilidade. Ele, o treinador, nos apoiava e estimulava, mas não podia enfrentar os "donos do time".

Foi meu professor e ídolo. Brincava comigo chamando-me de “Cheravolovitch” - meu sobrenome é Ceravolo, como se eu fosse um jogador húngaro. Lisonjeava-me a comparação.

O grupo de jogadores que jogo hoje é heterogêneo, com meninos e meninas de 12 a 16 anos; jovens de 25 a 30 anos e os “senior’s”, como eu, de 45 a 60 anos ou mais. Sou o decano da turma nos meus 69 anos e cinco meses, quase nos setenta.

É um projeto de base, de formação de jogadores de polo aquático, focado em comunidades carentes da região. Entusiasmei-me com ele, pois posso transmitir minhas experiências e vivência aos aprendizes, como também jogar, ou melhor, brincar com eles. É muito divertido e prazerosos jogar com os meninos.

Agora, passados quase meio século desta saudosa época da minha juventude, e tentando resgatá-la, mesmo sabendo das dificuldades que o tempo nos traz, vale a pena o empenho, pois estou voltando a fazer o que gosto e compartilhando conhecimento, apesar das dores na minha carcaça a cada “racha”.

E, "ficarr ixperto".

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 23/05/2023
Reeditado em 24/05/2023
Código do texto: T7795641
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