O Flagrante
A beleza nem sempre está para o homem como o canto para uma ave ou a onda para o mar e isto é mais por falta de simples vontade do que condições. A arte está no belo, mas nem sempre o belo está no coração do homem. Se quiser penetrar na intimidade mental de um homem observe como ele vive o seu dia a dia; não apenas sua aparência externa, mas seu comportamento e seus ideais. O que faz um grupo de pessoas viver na mais absoluta sujeira; imundície, mesmo? É algo que vai além da compreensão mais corriqueira.
Quando eu penetrei no terreno a primeira coisa que me chamou a atenção foi o cheiro. Não era simplesmente o cheiro de um cocô de cão ou de gato que reconhecemos prontamente, mas algo difícil de definir. Olhei para a entrada de um dos cômodos e ali estava o primeiro indício do desleixo e da indiferença. Era uma varandinha no alto de cinco degraus em mármore encardido onde três crianças esforçavam-se por brincar no exíguo espaço. Uma delas não devia ter ainda oito anos e as outras duas, quase adolescentes, já passavam bem desta idade. Estavam sujos de dar pena. Os pés e as mãos totalmente empretecidos e os shorts cheios de uma espécie de barro, como se tivessem saído da terra para brincarem ali, deixando as paredes e o piso branco da varanda completamente enlameados.
Porém, o que me chamou mesmo a atenção foi o senhor sentado à cadeira de rodas em um dos cantos. Só consegui identificar o odor que me surpreendera ao chegar quando já colocava meus pés no primeiro degrau da escada. Antes, precisara eu desviar-me de dois enormes pedaços de bosta que deparei ao chegar e, agora, juntando os dois cheiros, sentia-me mal e deprimida. O velho fedia; ressonava, a cabeça pendia para o meu lado, tinha os olhos entreabertos e a cabeleira lisa, totalmente branca, se esvoaçava pelo ar que vinha do ventilador em uma cadeira a sua frente. Das pernas, cheias de chagas, escorria um líquido escuro avermelhado que já manchava o chão em volta das unhas grandes, feias e por fazer. Tinha as mãos sobre o colo e já àquelas horas no fim da manhã ainda vestia o seu pijama de um odor horripilante de roupa que há dias não vê uma água. Certamente ele precisava de um banho; foi o que reconheci logo à princípio.
- Por favor, me ajude a levá-lo para o banheiro – foram as minhas primeiras palavras quando alcancei a varanda e vi aparecer na porta da sala uma gorda, secando as mãos num avental que trazia pendurado ao pescoço.
A casa era de poucos cômodos, o essencial para uma família pequena. Há uma diferença fundamental no nosso estado de espírito, relacionada ao tipo de ambiente em que nos encontramos. A organização, a limpeza e o cheiro bom, quando nos invade causa leveza e bem estar, ao passo que a desordem só faz deprimir e estagnar. Eu estava mal; pior me senti no momento em que entrei na casa. Um odor fétido de gordura impregnava o ar. Ela devia estar cozinhando alguma coisa para o almoço que se aproximava; o que identifiquei pelo chiado que vinha da cozinha. O produto da fritura volatilizava-se; uma fumarada negra subia do fogão e só encontrava saída por um pequeno basculante entreaberto, já horrivelmente ensebado por frituras anteriores. Concluí que não deviam proceder de outro jeito a não ser cozer dessa forma insalubre os alimentos.
O coitado do velho mal podia se movimentar. Apoiava-se no meu ombro e eu o agarrava pela cintura, pelejando para chegar ao banheiro, mas era tanta tralha no meio da sala que mal conseguíamos dar um passo sem esbarrarmos em alguma coisa.
Impossível olhar para qualquer pedaço do cômodo sem deparar com objetos jogados; havia mais mobília do que o espaço podia conter. As duas poltronas atulhavam-se de roupas misturadas a material de escola esparramado, saído de uma mochila escolar que fora lançada ali de qualquer maneira e se abrira, espalhando lápis, borrachas e um bocado de folhas soltas. Um gato dormia em um dos braços de uma poltrona e saltou para o chão quando trombamos nela perturbando a sua quietude.
É próprio da criança saudável e cheia de energia entediar-se com um brinquedo e querer logo substitui-lo por outro e depois por outro e assim gastar o seu dia e sua disposição ilimitada. É certo que a diversão na varanda sucedeu-se a outras que largaram no meio da sala. Tive que redobrar minha atenção para não pisar em bolas de gude espalhadas pelo assoalho, quebrar bonequinhos de plástico ou rolar sobre carrinhos de bombeiro e de polícia ali esquecidos e abandonados. O desenho animado transcorria para ninguém na tela acesa da televisão. O calor era insuportável; eu já suava em profusão. Ao passar pela cozinha disfarcei uma careta e não pude evitar levar a mão ao nariz por não aguentar o fedor. Percebi levantada a tampa da lixeira e que devia haver ali algo podre há muito por descartar. A pia se encontrava repleta de louça ainda do café da manhã. Felizmente uma banheira nos esperava; era mesmo a única forma de dar banho na criatura.
- Como consegue deixar um ser humano assim tão abandonado? – perguntei, enquanto lavava o velho, à mulher que me espreitava da porta.
- Não sei, minha senhora; tem que perguntar à pessoa responsável por ele. A senhora é da agência de enfermeiras? – indagou-me.
- Não, minha cara. Sou do conselho de família e estou aqui devido à queixa que recebemos: abandono de incapaz. Isto não vai acabar bem; o que a senhora tem a dizer? – Notei preocupação, mas, ao mesmo tempo, grande tranquilidade no semblante da mulher.
- É triste; muito triste esta situação. Também estou muito penalizada.
- Como assim? – perguntei, tomada de grande confusão.
- Moro aqui ao lado e já cuido da família desde que o casal se separou. Venho três vezes por semana e faço o que posso por eles.
- E onde está a mãe dessas crianças?
Ela não respondeu a minha pergunta e nem precisava. Entra pelo portão uma mulher, estrambelhada, falando alto, xingando palavrões e perguntando pelo pai que não vira na varanda. Estava descaradamente bêbada. Saí do banheiro para realizar o flagrante; mais um dentre tantos os que já fazem parte da minha rotina.