Nico Esteves
Em qualquer lugar desta terra onde vivemos, têm tipos que são marcantes.
Nico Esteves, um homem que nunca se conseguiu saber de onde veio, era um tipo desses.
Para começar a doideira toda, ele já tinha o nome. Seu pai, que foi faxineiro de um laboratório, colocou no menino o nome de Arsênico. Os oficiais do registro civil, na época, pouco ou nada sabiam de nomes que devem ser recusados. E na sua certidão de nascimento consta mesmo o nome do veneno conhecido pela sua propriedade letal.
O garoto só foi descobrir isto quando entrou para a escola. O professor, um antigo ferroviário que tinha sido aposentado por causa de uma tuberculose grave, desta que o povo gosta de chamar de galopante, ficou muito surpreso quando viu tal nome na lista de alunos.
- Por que tem este nome, rapaz?
- Sei não, professor. Mas é diferente e bonito, o senhor não acha?
- Acho coisíssima nenhuma. Você sabe o que quer dizer seu nome?
- Não senhor. O que é?
- Venha cá – o mestre não queria expor ao ridículo o pobre do garoto, e falar alto, com toda turma ouvindo, sobre a barbaridade daquele nome. Contou-lhe o significado, baixo, sem que os outros ouvissem. Naquela época, nem é bom pensar em processo judicial para alteração do nome, ainda mais naquele lugar distante de tudo. O professor encarregou-se de nomear o guri. Abreviou para Nico, que parecia um apelido. Esteves carregou para o resto da vida o novo nome.
Fez um brilhante curso primário, era inteligente e a deficiência do ensino no velho galpão de madeira, com teto de folhas de amianto. Até hoje, no interior, são assim as escolas. Não possuem nada, nem mesmo professor fixo. Alguns abnegados, que tiveram a oportunidade de estudar e completar o curso ginasial, o que já é um fato bastante raro, guiados por mão superior, talvez divina, sentem pena daqueles pobres coitados abandonados de tudo.
A prefeitura do lugar, se é que este canto tem prefeitura, fica encarregada de arranjar o local para acomodar os alunos. Concurso para ingresso no magistério? Ninguém sabe o que é isto. Quem sabe ler melhor do que os outros habitantes e está disposto a dedicar-se a tarefa de ajudar, assume o cargo, quase sempre sem ganhar nada por isto.
Este é o sertão, o interior que o povo não conhece nem imagina.
Nico continuou seus estudos. O antigo ferroviário tinha amigos na cidade grande, que não era tão populosa. Tinha lá seus quinze mil habitantes, se tanto. Mas o importante é que conseguiu uma vaga num ginásio público, onde o ensino não era exemplo para escola nenhuma, mas também não era uma escolinha tico-tico. Nico estava, nesta época, com treze anos de idade, e como não morava mais com os pais – a escola era distante da sua casa uns bons vinte quilômetros, arranjou um emprego numa padaria da cidade, que tinha muito poucas outras fornecedoras do alimento que nem sempre é o café da manhã de muitos. Serve também como um bom almoço, acompanhado de peixe, em lugares que têm rio ou mar.
Não é preciso dizer que tão logo Nico aprendeu a fazer pão. Josias, sempre com as mãos cuidadas e limpas, não se incomodava em ensinar como era feito um pão de qualidade, mesmo a farinha não sendo especial.
Um professor de Nico resolveu o problema do nome do rapaz. Era amigo do juiz, e sem processo mesmo, conseguiu que o nome Arsênico fosse mudado par Nicodemus, por escolha do próprio esforçado aluno.
O tempo passou, Nico sem problemas obteve seu grau de ginásio, tinha amealhado um dinheirinho bom, pois não era de muitos gastos e fazia com Josias, seu mestre-padeiro, doces e outros quitutes para moradores locais, pagando ao dono da padaria uma parte dos ganhos.
Foi visitar os pais, levando presentes da cidade grande. Mas o orgulho mesmo era o diploma de conclusão do curso ginasial. Pai e mãe estavam orgulhosos do filho, que os surpreendeu fazendo o almoço. Farinha de milho é comum nas casas. Mas o paio e o queijo mussarela, que Nico havia levado também, fizeram uma polenta maravilhosa. Tanto Honorato, como Quitéria, pais de Nicodemus Esteves, ficaram admirados com as qualidades do filho.
Nico não queria parar. Havia feito força, e conseguira o que queria. Agora era continuar e chegar à faculdade. Ainda não decidira sua futura profissão, mas gostava de livros e leituras, e tudo indicava que estudaria Letras.
Mais uma vez a sorte sorriu para ele. O juiz, aquele que tinha mesmo sem processo autorizado a mudança de nome, conseguiu uma vaga no secundário estadual, que Nico completou sem dificuldade.
Conheceu, na escola, uma bela moça. Ligia, era o seu nome. Em pouco tempo consolidou-se um namoro sério, ambos estavam apaixonados e pretendiam casar-se. Estudavam muito, e juntos fizeram o vestibular, agora em outra cidade. Por causa da sua habilidade com massas, Nico continuou trabalhando numa padaria, mas não era mais balconista. Em pouco tempo dirigia a parte de refeições ligeiras, uma das especialidades da casa.
Tanto ele como Ligia conseguiram passar sem muita dificuldade no vestibular. Ela não precisava trabalhar, o pai tinha como sustentá-la.
Moravam numa república, homens bem separados das mulheres. A cada dia que passava, o futuro do jovem casal era mais promissor. Ambos estavam fazendo o curso com muito brilhantismo, eram queridos e elogiados pelos colegas.
Numa tarde que estava cinzenta, e prometia chuva forte para a noite, Nico voltava do trabalho, rumo à república, onde pretendia tomar um bom banho. Caminhava devagar, sem preocupações, quando viu um aglomerado de gente. Foi ver o que era. Todos os presentes estavam revoltados.
Nico perguntou a um homem o que tinha havido, quando percebeu, antes da resposta, que o corpo caído e coberto com uma folha de nylon preta, estava com uma sandália marrom que ele conhecia bem.
Trêmulo, suando e sem saber do que se passava, levantou a parte da coberta onde estava o rosto. Ligia dormia o sono que ninguém acorda. Tinha sido atingida por um tiro dado por um confronto entre policiais e traficantes.
Nico e os pais da moça despediram-se com flores, na manhã seguinte.
Até hoje, nunca mais ninguém sabe onde ele se encontra.