Quando é fim
Senti um gosto amargo na boca, abri os olhos e tudo parecia ainda nublado. Um certo desespero bateu forte no peito, acho que perdi a hora. Esforcei-me para lembrar o que havia de tão importante que me fazia levantar tão cedo. Ah sim, o velório de meu pai.
Levantei, havia um peso enorme em mim, como uma prensa constante no coração a apertar. Fui ao banheiro, lavei o rosto e olhei-me no espelho.
-Você está pronta? Falei em voz alta.
Que pergunta besta, quem é que realmente está pronto para a morte ou para ver morrer?
Inevitável usar preto, não porque estou de luto, mas porque meu guarda-roupa é quase 100% monocromático. Não será difícil achar uma peça adequada à ocasião. Bom, também não poderia usar aquela camiseta do Metallica ou aquela jaqueta
rasgada. Vou seguir o protocolo. Qual o traje para a ocasião? Sim, uma roupa sóbria e nem pensar em sorrir. Quem em sã consciência iria sorrir num velório?
Então lembrei-me do velório de minha avó paterna. Passamos a madrugada com toda família lá, meu pai, meus tios e tias meus primos e primas. Um certo momento, meus primos e eu estávamos a contar piadas e rir. Éramos adolescentes, um tanto sem noção da morte e o que era perder uma mãe.
Bom, talvez algumas risadas poderiam deixar o ambiente mais leve nesse velório. Tomei um café sem poder saboreá-lo, olhei para o pão, mas não adiantava, não tinha fome e não iria conseguir comer nada. Estacionei o carro e fiquei a observar a família, os irmãos do meu pai se abraçavam e choravam. Era o primeiro deles a morrer. Se deram conta que não eram imortais e que agora estava mais perto o fim. Sim, sim... ninguém sabe sua hora, isso é fato. Mas a cada dia que passa você está mais perto da sua morte.
Tomei coragem, respirei fundo e abri a porta do carro. Estava me preparando para os inúmeros abraços e "sinto muito". Logo eu que tenho dificuldade com o toque, mas preciso esquecer e seguir o protocolo. É assim que as pessoas normais se
comportam. Veio a primeira tia.
"Será um longo dia". Pensei.
Depois de muitos abraços e choros, olhares de pena que me eram lançados. Alguém me segurou pelo braço e disse:
- é melhor você se sentar, você está pálida. Comeu alguma coisa?
Balancei a cabeça e obedeci. Sentei-me e meus olhos pareciam embaçados. Não sei por quanto tempo permaneci ali. Não entendia mais nenhuma palavra proferida a mim, eram apenas ruídos, burburinhos. O padre falou umas palavras sobre meu pai, disse que eram amigos e que naquela mesma semana haviam conversado sobre a vida, que ironia.
Estava acabando, resolvi dar uma última olhada, antes de fecharem o caixão. Havia ali um rosto inchado com as mãos cruzadas no peito. Senti vontade de tocá-las, mas hesitei e foi a última vez que o vi. Nunca mais.
-Mais um pouco. Sussurrei.
-O que foi minha querida? A irmã mais velha de meu pai falou dando-me a mão.
-Nada não, tia. Falei apertando sua mão com força.
O que eu queria? Aguentar mais um pouco ou vê-lo por mais um pouco? Tanto faz agora. Caminhávamos em direção ao local onde estavam meus avós, ele seria enterrado ao lado. Ouvi meus tios comentarem:
-Ele será o único a ser enterrado ao lado do papai e da mamãe.
Não sei se estavam com inveja, ou estavam felizes por ele ou se simplesmente constataram este fato e não sabiam mais sobre o que falar. Alguém me deu uma rosa e lancei antes de jogarem a primeira pá de terra. E assim se foi.
Agora cada um volta pra sua casa, pra sua rotina. Alguns ainda sentirão uma tristeza ao longo dos dias. E, assim que fechei a porta do carro, desabei por tudo que não chorei. Permiti-me por instantes sentir, sofrer, desabar.