O acontecido do acontecido (ou, onde está o sujeito?)

A que custo, a que custo, um homem desdiz, só com um gesto, tudo o que defendeu durante a vida toda? Sem explicação. Sem explicação que um sujeito assim, considerado por demais, respeitado inté por gente de pensamento contrário, pudesse, assim, sem que pudesse dar motivo, pudesse, esse sujeito, rasgar a própria história construída por demais com retidão. Estranho, mas como diz as escrituras, o diabo traveste de várias maneiras, rebuliça cada canto da mente que, se o sujeito não tem firmeza de crença, fácil fácil toma conta e, pronto, tá feito o abate! E aí, só pelo Altíssimo, só por Ele, consegue espantar o invasor e liberar o sujeito da perdição. Pois sim. Foi assim, sem por nem tirar, que o sujeito se resolveu. Tem palavra nas muitas bocas, assim, de muitas pessoas que falam de tudo sem de nada saber, que o sujeito treslocou das ideias. Que dá noite pro dia, se enamorou de uma mulher. Que sem consideração dos perigos de se apaixonar por mulher de homem matador, o sujeito, sem medir perigo e consequência, o sujeito, irresponsável, até, resolveu ir ter com ela.

É certo, e muito sabido, que o ocorrido deu muita falação. Em cada boca, uma história. Cada cabeça, feito juiz, dava a própria sentença. Inté se disse, prova de causo nenhuma, que o sujeito não batia bem das ideias. Que apareceu, tempos já passado e esquecido, sem eita, nem beira. Que inté que no começo da chegada, assim, meio que passado sem notado, o sujeito inté que pareceu bem do juízo. Inté tinha gente, inté doutor, que seguiu suas pegadas, suas palavras, como se diz, palavras de homem mais que demais sabido. Ora pois, teve ocasião, inté saiu nas emissoras, no jornal, rádio, tudo, tudinho lugar deu notícia que o prefeito, mais o promotor, o presidente da câmara, quer dizer, gente muito sabida das coisa, então, inté saiu nas emissora, que o homem ia fazer parte do Conselho. Falou nas emissora, jornal e rádio, que o Conselho era um órgão tão importante que só gente considerada fazia parte. Era um órgão que ia ajudar o prefeito a lidar melhor com as coisas da prefeitura. Pois sim, o homem foi chamado pra fazer parte do Conselho.

De sutil em sutil, o homem chegou, fez conhecimento, conseguiu apertos de mãos de autoridades, fez lado de prefeitos e juízes nos retratos oficiais; era o sujeito certo nas rodas de vereadores, cléricos. Quando foi agraciado com o título de cidadão hemérito da comarca, inté o Bispo (que nunca ia em cerimônias, nem com o prefeito), fez questão de usar da palavra. Deu bençãos especiais, suas próprias palavras, ao filho de Deus, que a cidade tinha a honra de ter entre os seus. Jornais estamparam em letras garrafais o ocorrido. Em cada roda de conversa, nenhum assunto, a não ser a outorga do importante título. Tudo e todos, inté que transversalmente, acabavam no mesmo assunto. Rebuliço da mente, inté Zé Codorna, filho de Seo Ismael, marido de dona Dondora, eis sim, bem sim sim, ninguém que falava outra coisa. Maria Minervina da Rocha Matos, belezura de moça, desde moçoila, educada inté por demais, igualzinha madamas da cidade, sempre com bolsinha e fita de cetim, sapato bem que demais de bonito, moça prendada, moça que dizia, desde que saiu da infância, moça mocinha, já dizia, sempre com seu belo sorriso, dizia que ia ser juíza, igualzinha seo Tavares, juiz da cidade, amigo, muito amigo de pai, seo Juvenal, homem reto no caráter, homem que muito de respeito. Pois sim, seo Tavares, o juiz, sempre em casa do pai, amigo antigo, desde moço, ainda sem pelo na cara, eram sim, amigos, quase irmãos. Pois sim. Dia morno, dia quente, tudo igual, tudo no decorrer do habitual viver de todas as manhãs. O galo a anunciar o dia a nascer. A vaca no ponto da ordenha. O sabiá no topo da árvore. O gato Getúlio, preguiçoso toda vida, sem postura de receber ordem jamais, andando molemente como se fosse majestade. O cachorro bigorna, peludo e estabanado, mais que Júlio, o filho esquecido no portão e criado junto aos outros seis da família, mais a tia Rosilda, a vó Dondinha, o vô Januário, sempre com o acostumado cigarro no canto da boca - ora falando com as galinhas Penosa e Mafalda, as mais botadeiras e, por isso, as mais mimadas - ora falando sozinho mesmo. Tudo no habitual habito do acontecer acontecendo. Mas, inté que se tentou, não se conseguiu que o evento da premiação não esticasse mais que hum dia. O fato noticiado continuou inté por mais de dez. Tudo era assunto logo esquecido, menos a premiação. Nem casamento, batizado, traição de marido, nada durou mais que o título de cidadão hemérito. Inté a comemoração do fundador da primeira escola e da primeira igreja, seo Jacinto, nem a festa foi tão anunciada e comentada. Logo no dia depois do festejo, assim, hum dia despois, logo tudo ficou só na memória, num canto, cantinho mesmo, bem guardado, bem escondido, quem um tal doutor famoso da mente fosse capaz de explicar; sem contar que tinha gente que nem lembrava do acontecido.

E dias depois, mais que trinta, constatou o senhor delegado, que o sujeito, por demais considerado, cidade hemérito, sem deixar um nada de sinal, um nada de indicado, o sujeito sumiu, ninguém sabe, ninguém viu, gritou pra todo mundo ouvir, o Genésio, o locutor, não oficial, mas auto-denominado, igual um certo político que diz ser da polícia especial do estrangeiro, o locutor, não oficial, o Genésio, gritou que o fulano tinha sumido, ninguém sabe, ninguém viu.

Dois anos se passarem, dois longos anos e nenhuma notícia do sujeito. O fato mesmo, que ninguém nega, nem o senhor delegado, é que o sujeito sumiu, ninguém sabe, ninguém viu. Sumiu tão bem sumido que Garibaldi, o querido beberrão, começou a espalhar que viu o sujeito um dia ser levado por uma luz branca e forte que saia de um negócio redondo parado no céu. O que o sujeito fez que arruinou sua reputação, anunciada no começa dessas linhas? É fato que não se pode dizer. Cada qual tem sua própria versão, cada qual, sua sentença. O que ninguém nega é que todos os dias seguem sem pressa, sem corrida, porque a vida, a vida é estrada que avança a cada passo, no hábito do habitual viver.