Poetas na Noite
Poetas na Noite
Relembro com nitidez aquela noite, era dezembro, véspera de natal. De dia as ruas fervilhavam de gente pelo comércio, às 18 horas o sino insistentemente tocava e o céu escuro de nuvens carregadas prometia chuvas fortes para aqueles dias. O ano era 1961, a cidade, Cristal, lugar encravado na Chapada Diamantina, no interior da Bahia.
Passei muitos anos viajando pelo Brasil, divulgando meus livros e aquele ano, resolvi matar as saudades dos conterrâneos. Sai a passear pelas ruas, absorvendo os cheiros característicos do lugar, ouvindo conversas, trocando informações, sentindo as lembranças fervilharem em minha memória atropelando umas às outras, na ânsia de se apresentarem....
Já era noite, as pessoas se encaminhavam para a igreja, com sombrinhas e guarda-chuvas nas mãos. Eu não dei muita importância a esse fato, embevecida que estava em rever os amigos e os lugares da minha infância e adolescência. Já não era mais criança e, por possuir um gênio muito difícil, permaneci sozinha até então. Muitos de meus amigos me rotulavam de moça velha rabugenta. Isso porque eu exigia muito na hora de escolher meus namorados. Estava no momento, pensava eu de encontrar um amor, pois, com vinte e cinco anos ainda não tinha casado nem uma única vez!
No mundo em que eu costumeiramente vivia, as pessoas contraiam seus votos matrimoniais mesmo que não de forma oficial e tradicional, ou seja, casavam de alguma forma, mais de uma vez, se fosse preciso.
Existia na sociedade vigente muito preconceito, é claro, mas para mim, isso não importava muito. O fato, é que não encontrava alguém que me compreendesse o bastante e me amasse a ponto de se acostumar a ficar noites e noites em minha companhia perambulando pelas ruas, ouvindo histórias do povo, e, sobretudo, que suportasse os dias em que me recolho - ainda hoje é assim - sem falar com ninguém, de cara "amuada" como seduz por aqui. Fico na verdade, isolada em meus cantinhos apropriados para criar meus personagens. Naquela época, eu era mesmo uma criatura extremamente solitária. Meus poemas se tornaram meus companheiros. Lia-os e relia-os e me apaixonava pelos meus admiradores fictícios.
Choveu torrencialmente naquela noite.Andei pelas ruas lamacentas, molhadas, escuras sinistras... Os raios e trovões eram cada vez mais fortes. A luz elétrica havia ido embora, a escuridão tomava conta da pequena cidade de 20 mil habitantes e a chuva fria tornava o meu corpo gélido. Percebi que havia andado muito, estava agora muito distante de casa. Ao longe avistei uma luz bruxuleante de um lampião a gás, me aproximei, era um bar, as pessoas bebiam e riam alto, sem se importarem com a chuva e os estrondos dos trovões. Estavam acostumados. Toda vez que chovia assim forte na pequena cidade, a luz apagava, e as famílias acendiam seus velhos lampiões guardados para essas eventualidades. Eu havia me esquecido desse detalhe e, na minha velha casa a tantos anos esquecida, situada na alameda das árvores, bairro tranqüilo e distante do centro, não havia nenhum lampião a gás. A Dona Rosária que cuidava da casa por todos esses anos - mediante pequeno pagamento depositado religiosamente na sua conta bancária - também não havia me alertado para a compra desse importante artefato.
Começo a pensar em encontrar alguém naquela escuridão, um homem que quisesse aquecer meu coração...Devaneio enquanto percorro as calçadas com os pés encharcados de água. De repente, tropecei numa grande pedra, falei um enorme palavrão. Do meu lado, percebi um brilho de fogo e dois olhos negros a espreitar-me. Gritei alucinadamente, aquilo era um espectro, uma assombração! Cruz credo! Benzi-me várias vezes, não consegui correr, nem tampouco, sair do lugar. Estava petrificada. O fogo brilhava no rosto do ser. Ele nada falava, mas, aproveitava para soprar a fumaça em meu rosto. Era um cigarro! Saí correndo nesse instante feito uma louca, o coração batendo forte, pensando que aquilo era alma do outro mundo. Escorreguei na lama, machuquei o pé. Ufa! Que alívio estava livre agora daquela assombração, sim, pois a fumaça do cigarro não tinha cheiro. Por aquelas bandas as pessoas eram muito supersticiosas e eu não fugia à regra. Fingia sempre o contrário para meus amigos, afinal, não queria que caçoassem de mim.
Absorta em meus pensamentos fui levantando-me devagar e intuitivamente segurei na mão estendida que me oferecia ajuda.Observei a dita mão sob a luz dos raios que continuavam a brilhar no céu. Que demônio seria aquele? Vi seu rosto claro, seu cabelo comprido e dourado, senti seu perfume quando se esforçou para levantar-me em silêncio, o cigarro a queimar-lhe o lábio. Anjo ou demônio? Preferi ficar com a primeira opção e sem resistências entreguei - me totalmente aquele momento. Não estava mesmo querendo emoções? Não saí a procura de algo que me aquecesse o coração? O ser devagar me acalentou em seu peito e sem dizer palavra me conduziu para um casarão do outro lado da rua, onde a luz do lampião de gás brilhava na sinistra escuridão das ruas molhadas. Nada perguntei, preferi viver aquela aventura, poderia morrer por causa disso. E se fosse um marginal, estuprador? Não pensei muito, deixei-me levar como que hipnotizada pelo ambiente, pelo clima, pela chuva, raios, trovões, pela minha ansiedade de viver uma grande paixão e sentir o cheiro de homem em meu corpo ressequido e há tanto tempo sem receber carinho de um macho! Tudo por uma boa história!
Entrei naquele lugar paradisíaco ainda em silêncio, não queria quebrar o encanto do momento. O fogo crepitava na lareira, o anjo deitou-me delicadamente no tapete da sala, tirou devagar as minhas roupas olhando na penumbra, cada detalhe do meu corpo, quase virgem; enxugou suavemente a minha pele com toalhas felpudas e perfumadas. Acendeu um insenso de alecrim e ofereceu-me um copo de vinho com pedaços de queijo. Estaria eu no paraíso? Deitou-se ao meu lado e murmurou ao meu ouvido que era um poeta em retiro, sabia de mim, da minha vida, estava me seguindo, afinal, na cidade todos comentavam a minha volta! Disse-me o anjo que queria conhecer-me. Um poeta! Que alegria! Abri as pernas bem devagar, fechei os olhos e ao som de Chopin entreguei-me sem restrições ao amor súbito e conheci nas entranhas daquele anjo, o paraíso perdido, há tanto tempo desejado. No calor da lareira, ouvindo o som dos trovões e da chuva, agora fina caindo insistentemente, eu sorvi o néctar dos deuses, naquela noite, na sofreguidão do vai-e-vem dos corpos em êxtase. Éramos dois poetas na noite escura, acendendo a luz em suas entranhas. Ainda hoje, já bem maduros e casados, relembramos essa nossa aventura. E, no dia seguinte a esse histórico encontro, para o meu anjo, mágico, feiticeiro sei lá! Fiz esse poema, escrito aqui em prosa.Teus olhos são reluzentes e negros, como as noites sem luar,penetrantes e profundos, hipnotizam e fazem sonhar,
Parecem duas jabuticabas ou bolas de bilhar. Grandes por vezes, ou simplesmente duas bolinhas de gude,a procurar, na escuridão da noite, outros olhos para então proporcionar, viajem pelas estrelas
No céu orgásmico delirante, união de corpos, num instante, mágico olhar! Mago, anjo, feiticeiro, sei lá,senhor de muitos segredos, na arte de amar.
Essa é a minha história.