Irmãos

Eram cinco irmãos morando no norte de Minas Gerais. Cidade pequena. A vida era capinar, arar, plantar, colher, ensacar, cuidar das criações. Gostavam desta vida, mas queriam mais. Sonhavam com outras terras, outras pessoas, outras oportunidades. Joaquim deixou a terra e a família primeiro. Foi para Belo Horizonte abrir caminho para os outros virem mais tarde. Comprou casa, arrumou emprego. A vida era difícil, pouco dinheiro e muito trabalho. Quando escrevia para os irmãos pintava um mundo diferente. Escondia os perrengues que passava. Estava muito cansado de ser sozinho. Sentia falta da família, mas não voltava de jeito nenhum. Saí de lá para vencer, disse para todos que ia ser alguém. Como posso voltar derrotado? Pensava. De jeito nenhum. Fico por aqui.

— Se aquiete Joaquim! A vida não é toda ruim. Casamos, temos nossa casa. Você está empregado. Só falta parar de passar a noite no boteco do Sô Pio tomando pinga com aqueles vagabundos que você chama de amigos.

Há muito tempo se arrependeu de casar com Tânia. Ô mulher difícil e mandona! Saio de casa para ser livre e me enrosco com esta daí. Você é burro mesmo, Joaquim. Primeira oportunidade que teve, casou. Agora aguenta. Quando meus irmãos vierem morar aqui tudo será diferente, ele se consola.

Demorou dois anos, Daniel nasceu e já andava quando recebeu uma carta de Hermílio dizendo que estavam chegando. Alugou um barraco para eles, na cozinha tinha um fogão a lenha e uma mesa de tijolo. Comprou uns colchões de palha baratos no mercado. Estes eram os móveis que tinham.

A chegada foi uma festa só. Pinga, carne, linguiça e queijo que a mãe mandou. Ficaram tristes por Vicente. Resolveu no caminhão seguir viagem para o Rio de Janeiro. Dois viajantes do caminhão disseram que ele teria emprego garantido no porto.

—Não teve nada que fizesse ele descer aqui. Apelamos para o Santo, para mãe e pai. Não adiantou. Disse que queria viver perto do mar e que Belo Horizonte não tem mar.

— Por enquanto é melhor não contar para pai e mãe. Deixa eles pensarem que estamos aqui juntos.

— É isto mesmo, Joaquim. Mãe não vai gostar disto não.

Riram, beberam mais pinga, comeram a fartura que trouxeram e dormiram nos colchões de palha. Joaquim esqueceu de Tânia e de Daniel. Nem contou para os irmãos que tinha casado e tinha um filho. Eu não escondi deles, só não lembrei de falar, pensou Joaquim no outro dia quando Tânia chegou com Daniel esmurrando a porta e xingando.

— Ih! Ferrou! Esqueci da Tânia. Hoje ela me mata. Abriu a porta correndo e apresentou mulher e filho para os assustados Hermílio, Olegário e Manoel.

Este foi o início da história deles na cidade grande. O que aconteceu em todos os anos que vieram foi a repetição desta cena do primeiro dia. Eles arrumaram seus empregos, compraram suas casas, casaram, tiveram seus filhos e cinco esposas ressentidas. Os irmãos se bastavam. Eles viviam em um mundo em que não abriram espaço para mulheres e filhos. Eram bons pais, amavam suas crias, trabalhavam para sustentar suas famílias. Não reclamavam. Viviam o dia a dia felizes e satisfeitos com a vidinha de trabalhar- casa- dormir- trabalhar. Quem presenciava os encontros destes irmãos viam estampados nos gestos, risos, abraços, cantorias, trucos, mulheres, que eles só viviam quando estavam juntos. As esposas eram esquecidas. O mesmo esquecimento que Joaquim teve de Tânia na primeira celebração, repetiu por toda a vida. E elas, as cinco, viveram infelizes, chorando, lamentando e exigindo um amor que eles eram incapazes de dar. Eles se bastavam, era o fato.

Nós, os filhos, crescemos vendo nossas mães infelizes e nossos pais egoístas saindo para farra sem pensar na família, diziam nossas mães. E elas eram solidárias, pertenciam a uma confraria que se reuniam para falar mal dos maridos e lamentar a vida miserável que tinham. Nós, os filhos, estávamos sempre juntos. Fomos criados como uma grande família de mães. Elas dividiam as queixas de serem casadas com seres tão negligentes e insensíveis e nós brincávamos, criando laços de uma amizade solidária por termos famílias iguais.

Quando o tio Vicente anunciava sua chegada em Belo Horizonte, minha mãe e tias podiam esquecer seus maridos. Era um fim de semana sem voltar para casa. Visitavam todos os parentes, jogavam todos os trucos na casa de todos e bebiam todas as pingas. Dormiam na última casa em que se encontravam quando acabava a bebida ou estavam bêbados demais.

O tempo não mudou nada. Eles celebraram e aplaudiram a vida juntos. Só existia algo a ser visto ou a ser feito se estavam reunidos. O que tinha de peculiar nesta fraternal relação é que só estavam felizes quando estavam juntos e o modo de vida e das relações com outras pessoas eram a mesma.

Envelheceram. Joaquim morreu primeiro, com uma cirrose aos 92 anos. Hermílio foi atropelado, Manoel teve um infarto. Nos velórios continuavam celebrando. Os velórios eram uma festa com muita comida, bebidas, risos e abraços de reencontro.

— No velório tenho a oportunidade de rever gente que não via há muito tempo. Dizia Tio Vicente rindo e a abraçando as pessoas que o cumprimentavam.

Depois da morte dos três, Olegário continuou em Belo Horizonte e Vicente no Rio. Os encontros acabaram. Durante um tempo Olegário ia ao Rio de Janeiro visitar o irmão que estava acamado e muito doente. Até que chegou a notícia da sua morte. Olegário foi ao velório no Rio. Quando acabou o enterro, os filhos, esposas e netos de Vicente o convidaram para assistir um ensaio de uma escola de samba. Foram todos. Antes passaram em casa para pegar duas garrafas de pinga do Vicente.

— Vamos beber todas em homenagem ao meu pai, tio Olegário.

Foram para o ensaio, sentaram em uma mesa próxima à bateria. O barulho era grande e todos dançavam o samba sem poder conversar.

— O que começa em farra só pode acabar em farra! Mesmo que seja só eu. Devo isto a vocês. Olegário disse em voz alta para si mesmo, vendo os sobrinhos e as noras de Vicente sambando na quadra da escola de samba.

Estava velho, mas não estava doido, pensou. Via e sentia Joaquim, Hermílio, Vicente e Manoel sentados naquela mesa, rindo e divertindo. Era real! Pegou a garrafa de pinga, olhou o rótulo. Era a mesma pinga que eles gostavam e beberam muitas vezes juntos. Encheu o copinho, bebeu a metade de uma golada só, jogou a outra metade para os santos e foi dançar com a família.

Márcia Cris Almeida

10/05/2023