Histórias que gosto de contar – O primeiro e último beijo
Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, CE, 9 de maio de 2023
Não passavam de dois pré-adolescentes, com treze anos de idade, ainda cursando o segundo ano ginasial. Ele mais tímido que ela. Embora carregando alguns defeitos corporais e de fala, Margarete não se intimidava com nada. Falava adoidada, como se dizia antigamente, isto é, pelos cotovelos. Sua voz anasalada deixava escapar palavras incompreensíveis para aqueles que tinham má vontade em ouvi-la. Era capaz de repetir uma palavra três ou mais, só para se fazer entender. Por passarem muito tempo juntos, Margarete e Reinaldo se comunicavam muito bem, ele entendia tudo o que ela dizia.
O aspecto físico dela não era dos mais agradáveis, coxeava, andava como se tivesse uma perna só, era engraçado. Tinha uma proeminente corcunda no lado direito, que era encoberta por cabelos loiros, que também emolduravam seu belo rosto. Sua pele não apresentava nenhuma mancha ou cicatriz. Parecia não pertencer àquele corpo, um contraste. Por incrível que pareça, ela não se maldizia, não se queixava e nem redarguia quem lhe maltratava, um ser iluminado.
Gostavam de conversar e faziam isso todos os dias, na volta para casa. Os caminhos eram os mesmos, a casa dele ficava antes, uns 150 metros.
Não era uma amizade bem-aceita pelos colegas de classe. Alguns nem falavam com eles, os evitavam. O colégio era frequentado por gente da classe alta, filhos de militares, médicos, dentistas, advogados, políticos, altos comerciantes, e até estrangeiros. Os dois sentiam-se isolados, mas isso não quebrava a leal amizade entre eles.
Nos primeiros dias de aula ela servira de chacota pela classe inteira. Seu modo de responder à chamada de presença, fazia rir a todos. Sua voz anasalada e fina, ao responder presente, o som saía “pegente”, era uma gargalhada só. Por três dias seguidos, na hora da chamada, alguns, em coro, gritavam “pegente”. E assim ela passou a ser conhecida, era o seu apelido, o que não lhe importava.
Por mais que os professores pedissem para deixá-la em paz, isso tinha pouca ressonância, os garotos eram tirânicos. Foram quase três meses nessa brincadeira de mau gosto, até quando os que a perturbavam perceberem a altivez da Margarida, a superioridade de espírito que ela carregava. Alguns foram se chegando aos poucos, deixando-a cada vez mais alegre. Os mais reticenciosos custaram a chegar-se, mas no fim do ano estavam todos unidos e comemorando mais um fim de ano letivo.
Margarida, vendo Reinaldo tão feliz, perguntou o que ele tinha visto nela. Porque fora ele o primeiro a se chegar e a lhe emprestar o ombro amigo. Ele respondeu de forma imediata, que no primeiro dia de aula, todos olharam para o seu corpo, ele olhara para o seu rosto, não vira sofrimento, só via alegria. Percebera que era uma garota forte, inteligente. Já ele estava rodeado de garotas fúteis, sem altivez. Sabia que ali estava uma pessoa de princípios, que se amava e poderia amar qualquer pessoa que se apresentasse à sua frente.
Mesmo tímido, o adolescente confessou que precisava de carinho, de apoio, de uma pessoa para conversar, e que ela, embora ainda não fosse totalmente madura, já trazia experiências de vida, sofrimentos e vitórias. A garota respondeu que realmente vinha sofrendo bastante, todos esses anos. Salientou que no início eram meses em um leito de hospital público, sua família não tinha condições para custear tratamento particular.
O rapaz, sem deixar a amiga continuar a sua fala, perguntou se ela estava bem melhor. A conversa tomou outro rumo, e a moça explicou que sua irmã se casara com um médico, dono de um hospital, que colocara à disposição dela tudo o que havia de melhor na época, para o seu tratamento. Aos poucos, acrescentou a adolescente, que passara a gostar da vida, por causa da melhora que vinha sentindo. Parando para respirar fundo, Margarida reiniciou sua fala contando que surgira outro problema, um câncer em seus ossos, e que tudo voltara como era antes. E completou, não saberia dizer qual resultado esperar.
De imediato o amigo lembrou ser ela forte, seria mais uma batalha a vencer. No que ela respondeu, sem muita convicção, ser mais um desafio. E justificou-se, dizendo saber que agora era diferente, os médicos estariam lutando contra uma doença traiçoeira. Que ela, na semana seguinte iniciaria a sofrível quimioterapia, já havia sinais de metástase espalhada pelos ossos da coluna. Seu tratamento seria nos Estados Unidos, onde seu cunhado iria fazer curso de especialização em um hospital de lá, ele era cancerologista.
Os dois se abraçaram e se beijaram pela primeira vez, prometeram que não haveria choro. Ficou também a promessa de um reencontro a qualquer dia, se Deus assim permitisse.