Três histórias: o grande médico, o tio e o pai

Três histórias: o grande médico, o tio e o pai

Silva & Ivan

O trabalho é bom, mas o descanso é merecedor. Apesar de estar de folga no dia 31 de dezembro de 2019, ainda pela manhã, recebi um telefonema muito estranho, o Wuhan Asia Hospital admitiu um paciente que necessitava de uma avaliação especializada. O indivíduo era trabalhador do Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, estava com febre, falta de ar e muita tosse seca. Disseram-me, também, que nenhum remédio fazia efeito e o indivíduo só piorava. Bom, eu como professor universitário e médico pneumologista tinha a obrigação de avaliar a situação, principalmente, após o pedido do diretor técnico da instituição onde trabalho. Confesso que por estar no último dia do ano de 2019, não queria deixar a minha família, mas a vida de um médico, ou melhor, de qualquer profissional da saúde é assim.

Bom, quero aproveitar o momento e me apresentar. Sou brasileiro, concluí o curso de medicina e realizei a minha residência médica no Brasil. Hoje, resido-me em terras chinesas, na populosa cidade de Wuhan. Mudei-me para cá por causa de uma bolsa de estudos oferecida pela escola médica da Universidade de Wuhan. Ela me possibilitou aprimorar os meus conhecimentos em infecções respiratórias. Nessa instituição, tornei-me doutor e, posteriormente, fui convidado a ser professor. Portanto, fui aceito pelo povo chinês e como agradecimento decidi ficar para ajudar essa nação.

Como eu estava dizendo, na última manhã de 2019 fui surpreendido por uma ligação. Eu sempre era chamado para avaliar situações complicadas do sistema respiratório. Mas naquele dia, eu percebi que me deslocaria para uma nova jornada, arrepiava-me, não sei o porquê, mas sentia que algo ruim estava para acontecer, tive a sensação de que eu me deslocaria para algo sem volta. Por isso, antes de partir, eu abracei demoradamente a minha esposa Sophia. Nesse momento, fechei os meus olhos e pedi a Deus que a abençoasse. Em seguida, abracei a minha filha de nove anos - ela é muito apegada a mim. Pude ver o seu semblante triste. Aquilo para mim soava como um “ Pai, você vai se ausentar de novo? ”.

Eu trabalho muito, tanto que nem mesmo o parto dela eu pude acompanhar. Mas, enfim, eu lhe dei um beijo na testa. Nesse momento a pequena perguntou:

- Você volta para o jantar?

Eu sentia que não, mas disse:

- Claro que sim, minha filha.

Antes de sair, olhei para eles, senti uma vontade de chorar, não sei o motivo. Respirei fundo e saí, silenciosamente, pois não queria acordar o meu velho tio que morava conosco.

Durante o percurso até o hospital, não conseguia me atentar aos detalhes da cidade de Wuhan. Passei pelo “Changchun Guan”, um templo budista considerado ponto turístico, e pelo “Parque Shouyi”, mas nada me chamava a atenção, pois eu pensava no paciente que encontraria em breve; pensava, também, na tristeza que provocara em minha filha. Confesso que apenas a beleza da “Torre do Grou Amarelo” me convidou a admirá-la. Sua forma bizarra, com os seus telhados frontais curvos, lembrando a espinhos, tornava-a impossível de não ser notada.

Não demorou muito e eu já passava pela ponte do rio “Yangtze”. Esse também era um local de muita apreciação turística, pois muitos se banhavam nesse rio como forma de lazer. Naquela manhã, contudo, a temperatura era de 6°C, era possível notar um céu acinzentado, um ar seco, um frio agonizante. Eu observava que as pessoas que caminhavam pela ponte portavam muitas blusas.

Atravessei a ponte e, repentinamente, já me encontrava no Parque “Guishan” e, rapidamente, já atravessava a ponte do rio “Hanshuri”, um afluente do rio “Yangtze”. Bom, vou parar de descrever o meu percurso, eu só queria deixar claro que passei por muitos lugares, os quais não imaginava retornar tão cedo. Finalmente, cheguei ao “Wuhan Asia Hospital”.

Algumas enfermeiras me levaram até o indivíduo. Rapidamente, disseram-me que há dois dias o trabalhador do Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan chegara ali com muita falta de ar, tanto é que ele tivera a sorte de passar em frente ao hospital quando, de fato, após uma frequência ventilatória acima de 30 incursões por minuto, tivera uma parada respiratória. Os médicos o socorreram e imediatamente o colocaram na unidade de tratamento intensivo. Por Deus, esse homem não morrera.

Enquanto me deslocava para a U.T.I, fui atualizado com mais informações, um dos acompanhantes do paciente dissera que o indivíduo se sentia muito fadigado, com dores musculares e uma tosse muito seca com cinco dias de duração.

Eu sabia que se tratava de pneumonia, principalmente porque nos últimos meses surgiram muitos casos assim em Wuhan, tanto é que, naquele mesmo dia, a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan notificara à Organização Mundial da Saúde, OMS, sobre isso.

Pois bem, eu ainda avaliava esse indivíduo quando o meu smartphone tocou. Claro que não atendi, estava trabalhando! Mas após concluir a minha avaliação, retirei-me dali e fui para um ambiente mais tranquilo para verificar quem me ligara. Foi então que percebi que a chamada era de um outro hospital. Eu estava prestes a retornar a ligação, quando um novo hospital me ligou. Atendi e percebi que havia outros pacientes na mesma situação desse que eu acabara de atender. Meu celular começou a tocar loucamente, muitas pessoas queriam falar comigo, desejavam a minha opinião.

Até a minha vizinha, uma senhora de 70 anos que morava no andar de cima do meu apartamento, ligou-me dizendo que o marido sentia falta de ar. Eu tentei acalmá-la, mas ela começou a ficar ainda mais apavorada, de repente eu ouvi:

- Doutor, doutor, o meu marido desmaiou!

- Tente se acalmar, verifique o pulso dele – aquela senhora já fora auxiliar de limpeza em alguns hospitais e, pela observação do trabalho da enfermagem, sabia checar pulso.

- Doutor, doutor, ai meu Deus... Não está batendo!

- Qual pulso a senhora verificou – perguntei.

- O do pescoço – ela me respondeu.

Foi então que eu percebi que o marido dela tivera uma possível parada cardiorrespiratória. Assim sendo, imediatamente, pedi a uma enfermeira que solicitasse uma ambulância para auxiliar aquela senhora.

Enquanto isso, tentei orientar a minha vizinha a realizar uma massagem cardíaca, mas ela não conseguia. Percebi que ela chorava muito, imagino que estava sem força. Foi, então, que notei uma mudança na voz dela, parecia um som anasalado, de repente, escutei um barulho. Continuei na linha, chamei por ela, mas a senhora não me respondia.

Foi, então, que liguei para a minha esposa e pedi para ela se deslocar até o apartamento daquela desesperada mulher. Concomitantemente, várias chamadas começaram a brotar em meu celular, o som de notificação dessas ligações me impedia de conversar. Desliguei.

Decidi pegar um telefone fixo do hospital e ligar novamente para Sophia. Quando ela atendeu, disse-me que a nossa vizinha estava ofegante no chão, já o esposo dela permanecia sem pulso. Minha esposa iniciou a massagem cardíaca, mas infelizmente não obteve sucesso. A ambulância chegou, realizaram os procedimentos, mas aquele homem foi a óbito.

Naquele dia parecia que Wuhan estava sem ar. Algo muito contagioso estava ativo. Foi, então, que eu percebi que estávamos diante de um inimigo muito forte. Por isso, eu decidi não voltar para casa. Afinal, “ quem me garantiria que eu não fora contaminado? ” Pedi a minha esposa, após toda aquela triste situação, que ao entrar em nosso lar não tivesse contato com ninguém e fosse imediatamente tomar banho. Além disso, pedi a ela que só saísse do nosso apartamento quando necessário e que, ao sair, portasse máscara facial.

O mais absurdo é que tudo isso aconteceu pela manhã. E quando chegou à noite eu não tinha conseguido sequer almoçar. Recebi várias ligações e imagens de exames, realizei várias visitas aos diversos hospitais da cidade. Apesar disso, o que mais me lamentava, naquele dia, era não estar com a minha filha na última noite do ano, sentia muita dor em não ver a queima de fogos com todos que amo, mas hoje percebo que tomei a atitude correta.

Hoje é dia 31 de janeiro de 2020. O mundo conheceu o Novo Coronavírus, a China e vários países estão em quarentena. Além disso, a OMS já decretou “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional”, acredito que em breve esse Novo Coronavírus, que causa a COVID-19, será o responsável por uma grande pandemia. Uma coisa muito interessante que nós, pesquisadores, descobrimos é que um indivíduo pode ser portador do vírus, mas não evoluir a doença, todavia, ainda sim, ele pode ser transmissor do vírus. Tanto é que isso fez a China entrar em colapso, com muitos casos confirmados, muitas mortes, muito medo.

Apesar de ter aprendido mais sobre o vírus e sua forma de transmissão, diferentemente daquele 31 de dezembro, os meus estudos, juntamente com as pesquisas de outros colegas, permitiram a prevenção por meio de várias atitudes, desse modo, isso me possibilitou voltar para casa após a primeira semana do ano. O meu serviço, contudo, impedia-me de estar plenamente ao lado da minha família. Tanto é que decidi montar uma barraca de acampamento em um cômodo isolado da minha casa, para que assim eu evitasse o contato com as pessoas que moravam comigo.

Pois bem, e daqui, desta barraca, estou escrevendo este texto, não sei o porquê faço isso, acho que para não me sentir só, pois a minha esposa e o meu tio estão dormindo e a minha filha...

...

- Pai!

- Filha! Saia daqui! Você não sabe que o papai pode estar doente?!

- Pai, se você estiver doente... Você vai morrer?

- ...

- Pai, não quero que você morra – argumentou tristemente, a menina.

- Papai não vai morrer, minha filha, agora, por favor, saia daqui – falou pausadamente.

- Não! Eu não quero que você morra – a menina entrou na barraca e abraçou o pai.

O médico ficou sem reação, não sabia se repreendia a menina ou retribuía o seu abraço. Ele como médico, pesquisador e professor universitário ficou desesperado, queria empurrar a menina para fora da barraca, todavia, o pai que havia nele, que só a menina conhecia, ou pelo menos sonhava que existia naquele homem, começou a ganhar proporção. O coração do médico chorava, na verdade, berrava de dor e a razão começou a perder a sua força. Aquele homem se lembrou que os estudos indicavam poucos casos da COVID-19 em crianças, lembrou-se que os mais propensos a se complicarem com a doença eram aqueles com idade mais avançada e comorbidades.

A razão, a lógica, a ciência, por incrível que pareça, começaram a ajudar a menina. Interessante! Antes inimigas, agora amigas. O médico, então, olhou para a filha e disse:

- Meu anjo, papai vai tomar um banho e trocar de máscara, volte para o seu quarto e me espere lá.

A menina sorriu. Mas não foi um sorriso qualquer, era algo novo, o brilho em seus olhos combinava com a alegria em seu coração. Parecia que ela tinha encontrado algo que perdeu há muito tempo, mas se analisarmos bem, era isso mesmo que tinha acontecido ali. Ela o obedeceu e voltou para o seu quarto.

Enquanto isso, o médico foi tomar banho. Lavou-se muito bem, cada membro foi esfregado diversas vezes.

Ele entrou em seu quarto, sua esposa estranhou ao vê-lo ali e perguntou:

- Por que você não está na barraca?

- Vou brincar com a Catarina – respondeu o pneumologista.

A mulher ficou sem reação, queria dizer “Não!”, mas o marido era um médico muito respeitado.

“Se ele diz que pode, então, pode” – pensou.

O médico, percebendo o semblante da mulher, disse:

- Amor, eu sei o que estou fazendo. Catarina foi até a barraca e me perguntou se vou morrer. Eu estou na linha de frente de uma guerra, portanto, eu posso morrer. Os estudos sobre esse vírus a cada dia revelam algo e desqualificam o que já estava quase consolidado. Eu não posso mais ser ausente na vida dela.... Eu tomei um banho, lavei-me três vezes e vou usar uma máscara para ficar com ela.... Além disso, o vírus não gosta muito de crianças... – sorriu.

A mulher não soube o que dizer, ela fez um silêncio e perguntou:

- Meu amor, você tem certeza?

- Tenho! – Respondeu.

- Você sabe que os vírus podem ser traiçoeiros.... Você mesmo acabou de dizer que os estudos só sugerem..., mas não afirmam nada.

- Eu sei...

- Você não estaria colocando a vida dela em risco?

- Jamais faria isso com a minha filha!

- Eu sei!

- Catarina não é asmática, não tem alergias.... Ela... Ela é uma criança saudável – argumentou o pneumologista. – Eu tomei todas as medidas necessárias.... Eu praticamente tomei banho de álcool em gel... E não estou dizendo isso em tom de brincadeira.... Falo sério, passei álcool nos braços, pernas, tronco, abdome...

- Você é o especialista! E se você afirma que pode, então, eu vou acreditar em você, mas só tenho mais uma pergunta.... Na verdade, duas – a mulher olhou seriamente ao marido. – Se Catarina ficasse doente... Veja bem, ela não sai de casa, não está indo para escola, as únicas pessoas que ela tem contato sou eu e o tio, bom.... Se ela ficasse doente – apontou o dedo indicador para o marido. - Você sabe que será culpado, não sabe?

- Se fosse para ficar doente, já era para isso ter acontecido desde aquele 31 de dezembro. Nós estamos seguindo todas as recomendações das autoridades médicas...

- Da qual você faz parte, não é?! – Disse rispidamente a esposa.

- Sim..., mas continuando, já era para qualquer um de vocês terem pegado... O tio, que é obeso, ex-tabagista e tem mais de 65 anos, ele seria, provavelmente, o primeiro... E veja! Ele está super bem de saúde... – sorriu. – O vírus não fica muito tempo no ar... Então seria impossível ele entrar pela janela... Só se a vizinha do andar de cima tivesse o vírus e espirrasse no momento em que vocês deixassem a janela aberta.... Meu bem, minhas roupas estão lá na garagem, eu mandei construir um quarto com banheiro lá embaixo só para eu não entrar aqui com as mesmas roupas que vou trabalhar.... Eu estou fazendo de tudo pela gente...

- Como você se sentiria se um de nós começasse, inesperadamente, a tossir e a ter falta de ar?

- Eu sofreria com vocês, mas posso garantir que tudo seria feito para vocês sararem logo.

- E se Catarina fosse contaminada?

- Criança praticamente não pega... E se pegasse ficaria assintomática!

- Tem certeza?

- Tenho! – Afirmou veementemente o médico.

- Agora eu tenho a minha última pergunta – disse a esposa.

- Qual é? – Perguntou o pneumologista já exausto.

- Posso brincar também?

- Só se você usar máscara – respondeu sorrindo o marido.

Os pais entraram no quarto da menina. Ela imediatamente ameaçou a se levantar da cama e correr na direção deles. O pai advertiu:

- Filha, coloque a máscara!

A menina obedeceu e em seguida pulou no colo do pai.

Ele a abraçou longamente, era possível escutar a respiração dele. Lentamente, ele abaixou um pouco sua máscara, encostou o seu nariz próximo ao ombro da menina.

- Nossa filha, seu cheiro é tão bom! Ah.... Que saudade de você.

- Meu amor, arrume sua máscara – disse a esposa.

Imediatamente, o marido a obedeceu.

- Pai, eu sempre estive aqui.... Meu quarto é próximo ao do senhor... – disse, inocentemente, a menina.

Aquelas palavras ecoaram na mente do médico. Um sentimento de culpa o tomou amplamente.

A esposa, percebendo a dor do marido, acendeu a luz principal do quarto e disse:

- Filha, vamos pegar o lençol de sua cama e a sua coberta e vamos construir uma barraca igual à do seu pai?

A menina prontamente aceitou. O pai, ainda muito pensativo, saiu pela casa pegando algumas cadeiras, as quais serviriam de suporte para a barraca. Mãe e filha combinavam a arquitetura da “cabaninha”.

Quando o médico trouxe as primeiras cadeiras, as luzes se apagaram. Houve um silêncio ali, esperaram por algum tempo, mas a energia elétrica não voltava.

Pai e mãe ficaram chateados com a situação, afinal, hoje fariam algo inédito. Pela primeira vez, em plena epidemia, mesmo Wuhan quase vencida pela Covid-19, o famoso médico pneumologista seria um verdadeiro pai.

No entanto, em meio ao silêncio, Catarina falou:

- Pai! Mãe!

- Pode falar, minha filha – os pais responderam juntos.

- Voem comigo?

O médico ficou mais intrigado.

“O que será que ela quer dizer com isso? ” – Pensava.

Até mesmo a mulher ficou sem saber o que dizer. Mesmo no escuro, o casal parecia se olhar em busca de uma boa resposta. Foi quando o médico disse:

- Claro, filha! Um dia viajaremos de avião, vamos visitar seus avós lá no Brasil.

Ela o repreendeu e disse:

- Eu sonho em voar novamente sobre um pássaro, pois assim eu sinto o vento balançar os meus cabelos. Papai, voar de avião é sem graça e não é possível sentir os meus cabelos balançarem!

Pai e mãe, por alguns minutos, questionavam-se sobre o modo como ela havia dito tais palavras, afinal, parecia que Catarina já tinha voado antes, tanto sobre um pássaro quanto em um avião, todavia, ela era um bebê, na única vez que esteve em uma aeronave. Desse modo, o pai, sem titubear, perguntou:

- Como você sabe a diferença entre voar de avião e sobre um pássaro?

Catarina procurou seus pais em plena escuridão e os levou até a sua cama. Em seguida, deitou-se sobre o colo deles, de modo que a sua cabeça ficou sobre o colo da mãe e seus pés nas coxas do pai. Após se arrumar, com uma voz muito decidida afirmou:

- Eu já voei com os dois!

A mãe perguntou:

- Quando?

A menina, naturalmente, respondeu:

- Sempre que desejo. Faço essas viagens aqui mesmo, em minha cama. Eu fecho os meus olhos e crio um mundo onde tudo pode acontecer, inclusive, voar!

O médico, meio sem compreender muito aquela situação, perguntou à menina se ela seria capaz de tirá-los daquela escuridão e transportá-los ao mundo criado por ela. Sem titubear, a criança disse que sim. Desse modo, Catarina pediu para os seus pais fecharem os olhos e segurarem em suas mãos.

- Minha filha, já está escuro, por que devemos fechar os olhos? – Perguntou confusamente o médico.

A esposa lhe deu um beliscão, como se dissesse “Fica quieto e obedeça a menina! ”

- Esquece, minha filha, já estou com os olhos fechados - disse o médico.

Catarina, então, preparou-se para começar a descrever o local para onde seriam transportados quando, magicamente, a luz retornou.

Os três estavam muito concentrados, de fato, o casal queria conhecer o “mundo de Catarina”. Com a volta da energia elétrica, eles se entreolharam, todos ficaram com um semblante de tristeza. Catarina era a mais tristonha. Foi aí que o pai, olhando para ela teve uma grande ideia. Falou:

- Filha, que tal apagarmos as luzes?

Ele não precisou de respostas... O sorriso da menina já indicava o passaporte para "viajarem" ao mundo criado por ela.

Eles apagaram as luzes, estavam prestes a sair de Wuhan, estavam prontos para voarem para um lugar sem Coronavírus, onde o médico seria pai e a filha, finalmente, teria um pai.

De repente, tocou o celular do médico. Eu o vejo se aproximando em minha direção...

...

- Ei! O que você está fazendo aqui, tio! – Disse-me ao me ver em sua barraca.

- Estou concluindo a sua história – apontei para o notebook que está sobre as minhas pernas.

- Mas que história? – O médico olha para o seu notebook, eu viro o computador para ele, então, o pneumologista visualiza este texto aberto como documento do Word. Percebo-o envergonhado. Ele olha para mim e fala:

- Eu só escrevi algumas coisas para...

Uma mensagem de WhatsApp interrompe a nossa conversa. Ele procura o celular em sua bolsa e olha para o visor do smartphone. Eu o observo visualizando a mensagem, acredito ser uma tomografia computadorizada de tórax. Meu sobrinho me olha assustado.

- O que foi? – Eu pergunto.

- Uma criança pode estar com essa nova doença. Ela está sintomática e grave.

- Mas você pode ajudá-la, não pode? – Perguntei, enquanto escrevia as últimas cenas.

- Não sei... – fez uma pausa longa. – Essa criança tem a idade da Catarina e seu exame não me revela coisa boa.

- Papai, você não vem? – Surge a menina perguntando pelo pai.

- O que foi, meu bem, por que a demora? – Questiona a esposa ao observar o semblante abatido do marido e a imagem do exame no visor do celular.

Eu pensei: “ Meu Deus, e agora? Catarina vai ficar muito brava com ele. ”

O marido olha para a esposa. Nota-se que ele está tenso. Mesmo assim, o médico desvia o seu olhar para a filha e diz:

- Filha, eu sei que sempre estou trabalhando, que quase não fico em casa. Eu sei que errei muito com você. Por favor, desculpe o papai... – ele não conseguia olhar para a filha, mas conclui. – Eu terei que ir ao hospital. Tem um menino com a sua idade precisando de mim.

- Tudo bem! – Disse a menina, em tom sereno.

- Você não vai ficar brava com o papai?

- Papai, hoje você reapareceu na minha vida.... Eu amo você. Você me fez feliz, por favor, vá para o hospital, ajude o meu coleguinha... “Os papais” dele devem estar tristes agora... Eu sempre estarei por aqui.

- Mas filha... – o pneumologista tenta falar.

- Papai.... Agora eu sei que você vai voltar para casa – a menina sorri.

- Você me disse que criança não pegava! – Disse a esposa.

-...

- E agora, como você me explica essa situação? – Sophia pergunta.

- Eu.... Eu.... Eu não sei.... Tenho que avaliar, o menino parece grave..., mas eu devo colher a história, investigar o seu passado, onde esteve, com quem esteve... Só assim poderei dizer alguma coisa – ele percebe um semblante preocupado na esposa e diz – Temos mais de um bilhão de pessoas aqui na China, agora que surgiu uma criança com sintomas tão problemáticos.... Fique tranquila! Isso é um caso isolado, atípico.

- Mãe, o papai sabe o que está fazendo. Ele é o melhor médico da China. Se eu tivesse esse vírus, certamente, queria ser tratada pelo papai.

- Não diga isso menina! – A mãe repreendeu.

- Mas.... Não é verdade? Se qualquer um aqui pegasse o vírus não queria que o papai fosse o médico?

Todos nós ficamos em silêncio. O pneumologista olha assustado para a menina, notei em seu braço os pelos eretos, provavelmente, sentiu um calafrio ao ouvir as inocentes palavras da filha.

- Você tem razão Catarina, mas tomara a Deus que ninguém fique doente por aqui – eu disse sorrindo tentando disfarçar o ocorrido.

Mais uma vez, ficamos em silêncio.

O médico, então, abraça a menina, pega a mochila e sai.

Eu imediatamente continuo a escrever esta história em meu velho caderno.

Certamente, meu sobrinho se desloca para garagem, apanha as suas roupas – lá ele guarda as vestimentas que usará no hospital - e parte para o trabalho.

Em seguida, Catarina olha para mim e me pergunta:

- O que você está fazendo aí, tio Ivan?

- Estou escrevendo uma história.

- Depois eu posso ler?

- Claro que sim, Catarina. Eu... – a menina tosse – Eu... – uma crise de tosse - Tudo bem? – A menina fica vermelha de tanto tossir – Catarina! Tudo bem? Ai meu Deus...

...

O médico, dentro do veículo a caminho do hospital, pega o seu antigo gravador de voz e inicia o aparelho:

“Hoje é dia 31 de janeiro de 2020, aqui em Wuhan são 23h30 minutos, este é o registro diário número 32 do Dr. Silva. Eu temo por aquilo que está por vir, bem como sobre o nosso futuro. Hoje o mundo chegou a quase 10 mil casos confirmados de contaminação pelo SARS-COV-2 e cerca de 1,7 mil mortes. Confesso estar preocupado com a proporção que esse vírus pode atingir. No entanto, apesar de não demonstrar muita letalidade, ainda sim, poderá provocar grandes impactos em setores externos à saúde. Nesta manhã, enviei um relatório aos colegas médicos nas universidades brasileiras com intuito de alertá-los quanto aos riscos que, devido à aglomeração de pessoas, como os tradicionais carnavais brasileiros podem trazer. Se o Brasil não se cuidar, então, a partir do momento que diagnosticar o primeiro caso, não demorará seis meses para estar entre os primeiros países com mais casos da COVID-19, pois seu tamanho continental tornará impossível um controle mais severo. Além disso, há uma grande briga política por lá, o que, certamente, prevalecerá nas discussões entre as autoridades públicas, fato que tornará quase impossível uma previsão mais aguçada sobre o que estará por vir. O que será do Brasil? Não sei, mas se não houver união.... Outros problemas serão somados ao Novo Coronavírus. Por isso, recomendei ao senhor Luís Henrique, Ministro da Saúde, que tomasse medidas para evitar o pânico social, pois isso certamente intensificaria o problema, além disso, falei para ele inicialmente priorizar medidas que impedissem grande aglomeração, tais como shows, eventos e, principalmente, o carnaval. Depois de falar com os representantes brasileiros, fiquei praticamente o dia todo realizando videoconferências com o objetivo de instruir os demais países quanto às formas de prevenção, contágio, sintomas, epidemiologia e tratamento da SARS-CoV-2. Resumindo o teor dos dados apresentados nas reuniões: a idade média dos contaminados é de 49 anos, predominando o sexo masculino; as comorbidades mais comuns foram diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, DPOC e outras doenças crônicas; quanto aos sinais e sintomas mais presentes - a febre, principalmente entre 38 a 39 graus, tosse, fadiga, dispneia formaram uma tétrade muito prevalente nos pacientes sintomáticos -, alguns indivíduos também manifestaram cefaleia, diarreia, expectoração, dor de garganta, anosmia e até vômitos; é possível deduzir que os indivíduos demoraram até sete dias para desenvolver sintomas, o que é horrível, porque ele pode transmitir o vírus sem saber que está portando o agente”.

Um silêncio, o médico decide ligar o rádio do carro. Ao fundo começa a tocar I Belive I Can Fly (Eu acredito que posso voar) ”, interpretada por R. Kelly:

I used to think that I could not go on…

(Eu costumava pensar que eu não poderia prosseguir...)

And life was nothing but an awful song…

(E a vida não era nada, além de uma temível canção...)

O pneumologista se mantém em silêncio e começa a prestar atenção na letra da canção.

But now I know the meaning of true love…

(Mas agora eu sei o significado do significado do verdadeiro amor)

I'm leaning on the everlasting arms

(Eu estou amparado em braços eternos) ”

Ele abaixa o volume da canção e ameaça continuar seu relato diário quando escuta:

…If I just believe it, there's nothing to it

(...E se eu só acreditar, nada poderá me impedir)

Imediatamente, seus pensamentos se voltam para Catarina, afinal, nada poderia impedir aquela menina sonhadora de voar. Ele sorri, começa a se lembrar dos momentos felizes junto a esposa e a filha, parecia sentir, mas com muito prazer, a dor do beliscão que a sua esposa lhe deu ao questionar menina. Seu coração sorria.

“I believe I can fly…”

(Eu acredito que posso voar...)

I believe I can touch the sky…

(Eu acredito que eu posso tocar o céu...)

I think about it every night and day…

(Penso nisto todos os dias e noites...)

Spread my wings and fly away…

(Abrir minhas asas e voar...)

I believe I can soar…

(Eu acredito que eu posso me elevar...)

I see me running through that open door…

(Eu me vejo correndo, atravessando uma porta aberta...)

I believe I can fly…

(Eu acredito que posso voar...)”

Uma lágrima escorre de seus olhos, ele se lembra do cheiro da filha, do sorriso dela, da voz decidida a querer voar. Ele sorri. Mas como tudo na vida tem um fim, ele percebe que já se aproximava do hospital onde aquele menino se encontrava. Uma luta mental surge, ele precisava raciocinar sobre caso que veria, mas Catarina tomava conta de seus pensamentos. Seu telefone toca:

- Silva!

“There are miracles in life I must achieve”

(Há milagres da vida que eu tenho que alcançar)

- Tio Ivan! Está tudo bem?

- Catarina está com falta de ar!

- Como? – Perguntou, desejando confirmar o que não queria ouvir.

- Catarina, tossiu várias vezes e teve falta de ar, Sophia e eu a levamos até a janela para ver se ela conseguia respirar melhor, aparentemente melhorou...

Spread my wings and fly away

(Abrir minhas asas e voar)

- Catarina está com tosse e dispneia?! – Pensou apavoradamente. Não conseguia mais pensar.

I believe I can fly

(Eu acredito que posso voar)

I believe I can fly

(Eu acredito que posso voar)

I believe I can fly

(Eu acredito que posso voar).

OBS: Texto escrito no início da Pandemia da COVID-19

E Alyson Ribeiro
Enviado por E Alyson Ribeiro em 07/05/2023
Código do texto: T7782330
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