NÚMEROS MISTERIOSOS

Tiago contempla, mais uma vez, a caixa por longo tempo esquecida no fundo da gaveta de seu criado-mudo. Persiste a dúvida se, desta vez, terá ânimo finalmente de desvencilhar-se do incômodo conteúdo.

Após demorados segundos de hesitação, apanha a caixa e, com a relutância de costume, destampa-a para examinar os papeis ali escondidos (mais do que guardados). Pergunta-se como ele e a esposa podem haver chegado ao extremo de manter, por tanto tempo, essas anotações reconhecidamente indecifráveis.

Muitas pessoas têm esse hábito de anotar, em folhas de papel que encontram à mão, números de telefones. Poucas, no entanto, enfrentam a dificuldade que ele e sua mulher demonstram em recordar-se de tais números, por não registrarem de imediato a quem chamaram.

Pior ainda é que ambos insistem em conservar esses papeis na esperança de recordar-se e dado o receio de que se trate de números de real utilidade. Bem, nunca se sabe. O ser humano é temeroso por excelência, ao menos em sua maioria, consola-se em pensar o desanimado Tiago.

A cada ocasião em que abre a caixa, sozinho ou acompanhado da esposa, algumas folhas são de pronto descartadas, em especial as que se identificam como telefones de outras cidades onde residiram ou que simplesmente visitaram. Boa parte das anotações continua metida em seu esconderijo, porém.

A primeira folha que aparece desta vez já detém o status de patrimônio histórico-familiar. A julgar pela letra, foi anotada pela mãe de Tiago (falecida, infelizmente). O número contém somente seis dígitos, tal qual o primeiro telefone por ele usado em sua casa quando criança. Dotado de forte sentimentalismo, ele olha os algarismos e parece ver a mãe a tomar nota, a arrumar a casa, a prepará-lo para a escola e a fazer milhares de tarefas mais, antes de sentar-se para desfrutar de seus programas de TV favoritos, alguns dos quais o filho podia compartilhar. Quanta saudade!

Outra anotação parece bem mais recente. Quase certo que o número pertence a um otorrino, que chamaram no ano passado em situação de emergência. Não obstante, o profissional consta da agenda telefônica do casal com outro registro. Nenhum dos dois quis chamar o médico em vão, só para confirmar a alternativa. Seria desagradável, certamente. Tiago tem, então, a ideia salvadora: deixar registrado a lápis o número misterioso sob o que está na agenda e livrar-se da incômoda folhinha. Um dia, quem sabe, precisariam recorrer ao otorrino de verdade e aí, sim, testariam o suposto telefone. Se não correspondesse, apagariam da lista, mas com a consciência tranquila de não se revestir da imaginada utilidade.

A anotação seguinte também se afigura antiga, ao compor-se de sete dígitos. O aprendiz de detetive toma coragem, acrescenta o mesmo algarismo inicial incorporado mais recentemente em todo o serviço telefônico local e disca para ver o que acontece. Atende uma voz de mulher, que diz “quitanda do seu Andrade”. Que boa surpresa! A velha quitanda onde se faziam compras séculos atrás. Surpreendente que ainda opere, tantos foram os comércios fechados ao longo dos anos, em meio às constantes crises econômicas neste nosso país.

A alegria de Tiago é contida, todavia. Nem se anima a perguntar por “seu” Andrade, pois pode ser que o homem já tenha morrido, após tanto tempo. Prefere disfarçar e indagar se a quitanda dispõe de mandioca. Ante a resposta afirmativa, procura saber se está bem fresca, para pretextar autêntico interesse. Ao obter a confirmação da senhora do outro lado da linha, informa que passará mais tarde e encerra a chamada.

Ei-lo radiante por haver enfim identificado mais um dos vários números anotados e desconhecidos. Após ver outras anotações, dá-se por satisfeito e decide não tentar outras ligações por hoje. A vida é como um jogo. Convém não abusar da sorte.

Melhor relatar à esposa os avanços que logrou no momento, recolocar a caixa no fundo da gaveta e aguardar novo dia, quando, revigorado pelo êxito, voltará a investigar as misteriosas notas em busca de mais revelações.

Bem dizem que a vida requer relativa dose de mistério em seu dia-a-dia.

Janeiro 2023.

Nota: Tiago é personagem de outras histórias do autor, disponíveis neste site: O Grande Erro do Pai de Tiago; A Turma Lá do Bairro; O Grande Caso de Tiago com Jane Loren; Nem Só de Estudos Vive o Melhor Aluno da Classe; Um Certo Time Incerto; A Bola Sempre a Rolar; Bambu; Tijucando: Praças.