Voltaria?
Meu primeiro grande desafio surgiu em um momento apropriado, uma noite típica de verão com muita chuva, trovoadas e relâmpagos, em meio à bagunça da mudança recente, seguia descalça pelo corredor em busca de um pão amanhecido para matar a fome. Algo inesperado e agourento me aguardava.
Quando iniciei minha jornada para morar sozinha, me preparei para tudo, dezenas de vídeos sobre dicas financeiras, de móveis, decoração, contrato, burocracias, mudança, velas, lanternas, números de serviços essenciais, melhores potes, panelas, jogo de cama, toalhas, uma lista imensa de coisas que nem sabia que precisava comprar, tipo: um escorredor de arroz.
O que eu não tinha previsto era a imensa, jurássica, Barata no meio do sala. Morando no décimo andar, imaginei que elas não subiriam até aqui. Como aquilo chegou na minha sala? Pela janela? Elevador? Veio com a mudança? Por um segundo a imaginei na caixa de roupas pegando carona e se mudando comigo, quase gritei pelo Rock, ele sempre vinha me socorrer, nem com a idade avançada me deixava na mão, deve estar dormindo pleno no sofá que agora não precisava disputar.
Eu estava sozinha nessa.
No auge dos meus 30 e poucos anos, um financiamento imobiliário eterno e a médica me alertando sobre colesterol, ainda chamava a minha mãe ou o cachorro para matar as baratas, até a vizinha se fosse necessário. Quando criança minha mãe discursava horas, questionando sobre como ia me virar se ela não estivesse, se eu ficaria em cima da mesa o dia todo, trancada no quarto ou fora de casa esperando alguém vir me socorrer?
Não dava para pedir socorro em plena quarta-feira onze e meia da noite a 10 km de distância.
Era um problema simples, uma chinelada, vassourada, sei lá, poderia jogar uma caixa em cima dela, inúmeras possibilidades que poderiam acabar em gritos e barulho fora do horário. Minha irmã não faria tanta bagunça, cinco anos mais nova, já mãe e casada, a menininha que dei banho, levei pra escola, limpei as feridas, já teria matado a barata, desinfetado o local e organizado o ambiente com uma eficiência que eu não tinha ensinado e nem sei a quem tinha puxado.
Como eu poderia achar que podia morar sozinha? Quem eu achava que era? Estava sendo dominada em meu próprio território por um ser minúsculo e asqueroso que nem tinha possibilidade de me matar, mesmo que me atacasse, escalasse, se enroscasse em meus cabelos, não havia nenhum perigo mortal.
Espera. Se eu morresse, quando achariam meu corpo?
Ridículo. O absurdo transbordou pelos meus olhos, eu podia me trancar no quarto e amanhã apelar para minha mãe.
Um trovão retumbou, seguido de um relâmpago que iluminou a sala através da janela sem cortina. A insensatez da ideia me percorreu. Não, não posso chamar minha mãe para matar uma barata. Eu podia resolver esse problema sozinha, podia enfrentar esse desafio, mesmo que tenha procrastinado outros tantos que vinham aparecendo até o momento.
A voz da minha tia ecoou na minha mente. Uma barata nunca está sozinha, imaginei-as nas caixas se preparando para invadir minha cama, um pensamento aterrorizante demais para se preocupar no momento.
Ignorando meu completo desespero, senti a barriga se agitar de fome, o pão de ontem estava na cozinha.
No caminho tinha a Barata.
Minha primeira compra no mercado foi um exagero de besteiras e coisas essenciais que eu ainda estava sem coragem de cozinhar. Minha comida cambaleava entre o insosso e o excesso de tempero. Minha irmã me jogava na cara sempre que a coisa desandava e fazia questão de lembrar o quanto a comida da mãe era melhor.
Não, talvez não conseguisse resolver isso sozinha.
O maldito celular, que parcelei em 10 vezes e já com a tela quebrada, estava na bancada e no caminho tinha a Barata. Imóvel, talvez estivesse morta, mas ela deu alguns passos. Nada é fácil assim.
Ainda que minha mãe trabalhasse o dia todo fora, esperava-a para resolver todos os conflitos, matar baratas, reclamar da minha irmã, da escola, da tv pifada, do gás que acabou de repente, me ajudar a escolher o que fazer na faculdade, ler o contrato de compra do apartamento, ir na loja de móveis, meu Deus, chamei minha mãe até para ajudar na escolha das roupas novas quando fui promovida.
Em que momento achei que era hora de morar sozinha?
Não tinha namorado, marido, filho ou um emprego que se diga estável, nem sei como tinha chegado até ali, a sombra do desemprego, de não conseguir pagar as contas e ser obrigada a juntar minhas poucas coisas e voltar derrotada, aparecia em meus sonhos dia sim dia não.
Eu não conseguia matar uma barata sozinha.
Uma semana depois da mudança, tudo ainda estava uma zona e meu projeto de decoração era uma prateleira meio torta que instalei no quarto. A ideia de reforma foi tentar pintar a parede da sala, um projeto meio certo e meio errado que resultou em partes manchadas que eu pretendia cobrir com quadros. O plano de fazer um planejado na cozinha esbarrou no meu orçamento, menor do que imaginava perante o valor das coisas.
Quem era aquela Barata perto das milhares de questões por resolver? Não tinha uma máquina de lavar ainda, o guarda roupa não tinha chegado, a loja me enrolava, minha fatura com certeza tinha estourado o limite que eu achei que manteria. A luz piscou e apagou, no completo breu com pequenos flashes dos relâmpagos, me sabendo descalça próxima a uma barata gigante, meu coração errou as batidas, precisava colocar os pensamentos em ordem. A solução era deixar o problema se resolver sozinho, a lanterna estava no quarto, me trancaria lá, se antes com luz não tive coragem de enfrentar a Barata, agora era improvável.
Eu poderia voltar para minha mãe, mas essa era uma solução fácil para a Barata. Me tranquei no quarto, usei uma roupa para fazer uma proteção embaixo da porta e com a lanterna vasculhei os cantos sem sair de cima da cama. Naquela noite dormi em meio a sonhos e pesadelos que envolviam insetos gigantes e um cartão de crédito vilanesco.
Era melhor admitir a derrota e chamar ajuda, poderia até trazer o Rock para dar uma geral. Mas na manhã seguinte não vi mais a Barata, organizei as coisas o máximo que consegui, com um chinelo na mão e inseticida na outra. Ela tinha sumido. Não era uma derrota, muito menos uma vitória. Então, a vizinha da frente gritou.
Nada era tão fácil assim, eu sabia que em algum momento a Barata ia voltar.