Contraponto

Todos gostamos de finais felizes, músicas melodiosas, saúde plena e tantos outros desejos que almeja a alma humana.

Não é assim que a vida tem seu curso. Existem os altos, sempre prazerosos, mas a outra face da moeda é inevitável. Não há como não a aceitar.

Raul, um homem de seus cinqüenta e poucos anos de idade, engenheiro químico e com um quê de boemia, voltava para casa após uma noite em companhia de um amigo, após uma boa noitada de sexta-feira num requintado bar. As mulheres que os acompanhavam, naquela noite, tinham sido deixadas no local onde estavam. Foram boas companhias para beberem um pouco mais da conta, mas só. Envolvimentos assim, é sabido, podem causar graves transtornos.

- Bom pianista aquele cara. Deve ter estudado muito para dominar o jazz.

- Fato raro hoje, Raul. Gostei muito do saxofonista, Íon Muniz. Conheço Íon desde o tempo que tocava com Vitor – o amigo de Raul, Ivan Canavarro, profundo conhecedor da língua portuguesa e tradutor de uma editora famosa, estava-se referindo ao saxofonista Vitor Assis Brasil, falecido antes de completar quarenta anos de idade.

Seu irmão gêmeo, João Carlos, é um dos talentos musicais brasileiros. Emociona-se aos extremos quando fala do irmão, considerado um mito. Além de dominar inteira e completamente o saxofone, Vitor possuía uma reserva espiritual respeitável. Como instrumentista, foi o maior intérprete de Antonio Carlos Jobim.

A madrugada estava amena. Nem o calor escaldante do verão, nem o frio que é trazido por correntes frias do mar.

Tanto Raul como Ivan, desviavam-se de mendigos que dormiam sob as marquises, cobertos por jornais ou trapos, e a cama era uma folha de papelão.

Uma realidade que não agrada ninguém, e este fato estava sendo o motivo da conversa entre os dois amigos.

- Este tipo de vida sempre me intrigou.

- A mim também, Raul. Contam muitos casos acerca deste problema.

- O que mais me intriga é que falam muito que este problema não é causado pela pobreza, mas por uma miséria que o homem carrega.

- Canso de escutar isso. Parece que ninguém ainda compreendeu este lado da vida, Raul.

- E acredito que não chegam a nenhuma conclusão. Tem de tudo, neste mundo estranho.

A conversa foi interrompida. Aproximava-se um maltrapilho que lhes dirigiu a palavra. Estava com fome, dizia. Nas proximidades existia, e está no mesmo lugar até hoje, um bar onde é feita uma sopa. Raul e Ivan eram freqüentadores do local, pobre e feio, mas cujos donos primavam pela limpeza e boa comida. Era outro mistério, aquele. O casal de proprietários, já de idade madura, mantinha o local em perfeita ordem e fazia dois tipos de sopa. Uma de cebola com aveia, mistura estranha e magnífico paladar. A outra, como não poderia deixar de ser, era a famosa “sopa de entulhos”, onde são encontrados os mais diversos legumes. Esta alimentava mesmo, pois havia um farto pedaço de carne de peito e macarrão em conchinhas. Um prato fundo, que era barato, não deixava que ninguém dormisse com fome.

O local era freqüentado por gente da noite, e contavam-se tipos diversos. Impossível descrever os fregueses habituais. Numa mesa comum, mas onde as toalhas de papel eram substituídas, não sem antes ser passada sobre a mesma um pano embebido em álcool para garantir a assepsia, pois afinal nunca ninguém se intoxicou com a comida farta. Os fiscais da saúde pública e da prefeitura não tinham trabalho com o estabelecimento simples, que acabou por se tornar uma visita obrigatória de quem quisesse dizer que conhecia a cidade.

Os donos do lugar mantinham uma ordem especial. Todos aqueles que se mostravam apresentáveis, mesmo sendo pobres, tinham uma grande sala para fazerem suas refeições. Os mendigos e os de má aparência ocupavam sala diferente, mas não menos limpa. Havia um sistema muito bem feito no local.

Raul e Ivan, que volta e meia tomavam uma sopa no tradicional bar, estando acompanhados de um mendigo, quiseram conhecer a sala a eles destinada. Não tinha nada de diferente; apenas os preços eram mais baratos.

Sentaram-se à mesa com o homem que lhes havia pedido auxílio. Ele escolheu a sopa de entulhos. Por uma questão de ética do lugar, digamos assim, bebidas alcoólicas não eram servidas naquela sala.

- Raul, estou tendo uma dificuldade chata, numa tradução.

- Ora Ivan! Você é mestre em resolver isto. Não posso ajudar. Sabe como meu português é deficiente.

- Ainda não sei se é melhor usar o indicativo ou o subjuntivo de um verbo.

- Danou-se, rapaz. Se você que entende deste riscado não sabe o que vai fazer, quanto mais eu.

O acompanhante maltrapilho, que ia levar a colher à boca, interrompeu a conversa entre os dois amigos.

- Qual é a dúvida, professor? – perguntou o mendigo.

- Você entende disto?

- Talvez possa ajudar. Nem sempre vivi como agora.

A conversa entre um erudito tradutor e um homem que aparentava estar chegando ao fim da dignidade, tomou rumo certo. O trecho foi citado na íntegra pelo estudioso.

O maltrapilho ficou meditando, e escreveu o mesmo num guardanapo. Depois de muito observar, e estava claro que o homem estava analisando o que estava escrito, com uma invulgar segurança afirmou que tinha concluído uma coisa.

- Professor, tanto faz, neste caso, usar o indicativo ou o subjuntivo. A frase não é definitiva, deixa algo a ser pensado. Em minha opinião, o senhor pode usar o modo do verbo que quiser.

- Como sabe disso?

- Bem, saber com segurança eu não sei, como o senhor. Mas como não existe uma determinação, pode ser usado um modo ou outro.

Agradeceu-nos a refeição, acendeu um cigarro que tirou de um bolso onde parecia estarem todos os seus pertences e foi-se embora.