Primavera

Primavera

-A notícia te abalou? - ela perguntou com sorriso temido nos lábios.

Contornei seu corpo com meu olhar, estava só de camisa e calcinha, sentada no sofá, senti uma mistura de desejo e angustia, minha cabeça estava repousando no ombro dela, podia sentir perfume que já era um pouco meu.

-Morte de criança, ainda por cima dessa forma, abala muito – essa era a causa da angustia, morte das crianças de forma tão violenta!

O nosso aniversario de vinte e dois anos de casados estava próximo, muito tempo junto, passou tão depressa, ela poderia falar melhor da dureza que foi casamento até ali, quem segurou as pontas na maioria das vezes foi ela, eu estava ou arrumando algum problema( normalmente financeiro), ou trabalhando.

Tomava soverte direto do pote, levou uma colher a boca, ainda olhando para o fundo do pote falou:

-Que fazer? Seres humanos são cruéis, talvez por isso não acredito em Charles Darwin prefiro acreditar em Deus – ela disse batendo com a mão na minha perna.

-Um massacre desses, onde Deus estava?

-Chocado, bem chocado com a atitude desse idiota, como as vezes ficamos chocados com nossos filhos.

-Ele não tem poder para impedir uma desgraça dessas?

Ela colocou o pote vazio de sorvete na mesinha depois virou bem pra mim e disse:

-Não temos governabilidade sobre nossos filhos, talvez Deus também não.

-É uma boa teoria. Romântica. O que reduz tudo ao criacionismo.

-O cristianismo adota a Bíblia como fonte explicativa sobre a criação do homem, você sabe o tal blablablá – ela encostou a mão em mim e me beijou – não, não sou criacionista, e devo dizer que não sei explicar a origem do homem, pra mim a fé em Deus não tem como fonte única de explicação a Bíblia, a verdade é que não sei se o homem consegue explicar a própria origem e a origem de Deus.

Eu olhei em seus olhos castanhos e senti que o amor é uma montanha-russa que anda em círculos, onde as emoções se alternam e sempre voltam, se controlarmos o nosso instinto narcisista e não ficarmos escravos de nossos instintos, pode funcionar muito bem amar alguém a vida toda.

Ela ia pegar o controle da TV eu peguei e disse: nada de tv, queria conversar um pouco mais.

-Mudando de assunto, você sabia que o Cléber voltou a beber? - Cléber era nosso amigo gay, bonito, culto, louco, uma pessoa ótima que esteve ao nosso lado por tantos momentos difíceis, ficou sem beber 796 dias, 12 h e 9 mim, a bebida sempre foi um passo pra coisas piores.

-Sei, saiu com uma turma, vi as fotos nas redes sociais, estou tão chateada, mas não podemos controlar nem a nossa vida, como vamos controlar a vida de uma pessoa como Cléber? Só podemos acolher quando ele cair na real.

-É uma pena. - disse, ele lutou tanto, ai virou escravos dessas formas de prazer que te levam a loucura, todos temos nossos defeitos, para o Cléber é melhor se acabar nos prazeres que se atirar de um prédio, ele me disse uma vez, se ficar aqui Jota vou morrer, certeza, melhor morrer bebendo , fumando transando e escutando Lady Gaga, a ficar em um lugar escuro onde a morte é tão dolorida, pensa nisso?

Nunca contei pra ela o que Cléber me falou, eu sabia o motivo dele ter voltado a beber, sem a bebida Cléber era um triste, depressivo, infeliz, disposto a tirar a própria vida, eu até disse, então vai meu amigo, vai ser feliz enquanto puder.

Ela viu que eu estava pensativo falou de repente saltando do sofá.

-Vou colocar um Tim Maia pra gente escutar.

-As nossas meninas?

-Elas não são mais nossas, estão ai pelo mundo ,cada uma em um lugar, me mandam mensagem dizendo que estão bem.

Comecei a beijá-la, já sabíamos onde tudo ia dar ao som de Primavera.

JJ F SOUZA
Enviado por JJ F SOUZA em 07/04/2023
Código do texto: T7758287
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