SEMANA SANTA NA ROÇA.
Início de outono. O homem sonolento na rede, após o almoço. A tranquilidade foi quebrada com o barulho do portão se abrindo. O cachorro latiu ao ver as duas crianças correndo pelo alpendre. -"Peçam a bênção ao seu tio." Eduardo e Natália obedeceram a mãe, meio a contragosto. Ernesto estava visitando a sobrinha Fátima. Ernesto ficou observando aquelas mãozinhas delicadas e fofinhas. -"Deus os abençoe." Ele sorriu para as crianças. -"Essas mochilas parecem pesadas, não?! Os alunos de hoje carregam tanto peso que ficarão com dores ou corcundas." Fátima riu. Ela entrou com os filhos mas logo voltou. -"Olha aí, quem pode explicar melhor a vocês." Ernesto encarou a sobrinha. Natália se adiantou. -"Tio Ernesto, temos que fazer um trabalho sobre a semana santa e a Páscoa." Eduardo fez uma careta. -"Vamos colocar orelhas de coelho, feitas de papel, como todo ano. Cada criança ganha um mísero ovinho de chocolate." Ernesto e Fátima riram da sinceridade do garoto de dez anos. -"Tio Ernesto estudou no seminário menor. Sabe tudo da Páscoa." Natália abriu a boca e um brilho saiu de seu olhar. -"Poderia ser nosso entrevistado. O que acha?" Ernesto saiu da rede. -"Tudo bem mas quando eu era criança a semana santa era bem diferente." Eles foram pra dentro. Natália abriu o caderno pra anotar. Eduardo, esperto, quis gravar a entrevista no celular que tinha ganho de presente de aniversário. -"A gente grava e depois passa pro caderno, Naty. A gente pergunta e o tio responde, simples assim." Fátima jogou água fria no ânimo das crianças. -"Tenho dois repórteres em casa e não sabia. Antes de tudo, banho e almoço." Tempo depois, Ernesto sentou-se a frente de Eduardo e Natália. Fátima, lavando a louça, estava curiosa. -"Trabalho de escola sobre a semana santa. Entrevista com tio Ernesto. Gravando." Eduardo colocou o celular na mesa da cozinha. -"Como era a semana santa no seu tempo de criança, tio Ernesto?" Perguntou Natália. Ernesto endireitou os óculos e passou a mão nos cabelos grisalhos. -"Natalia, Eduardo. Era bem diferente dos tempos atuais, aqui na cidade. Passei a infância e adolescência na roça. Era bom. A gente pegava um restinho de tempo das chuvas, tudo estava verde e muito bonito nos campos. A casa era simples, de madeira. A família era grande. Na semana anterior a semana santa, o pai saía pra arrancar mandioca, recolher milho pra mãe fazer bolo, curau e pamonha. A gente ia a pé até a vila, participar das celebrações da santa santa na igreja matriz. O padre vinha de fora, de outra cidade, com seu fusquinha verde abacate, levantando poeira nas estradas de terra. Vinha gente conhecida das fazendas e sítios, num grande encontro. Era proibido comer carne vermelha na semana santa, era lei. Excessão aos doentes e acamados, o que é natural, se está doente não pode jejuar. Era proibido caçar, fazer arapuca, matar passarinho. Nem em formiga a gente pisava. Era proibido pegar em dinheiro, varrer a casa, cortar unhas e cabelo. Escutar música e dançar, era proibido e visto como pecado grave. Xingar, brigar e discutir também era proibido. Na sexta feira santa, principalmente, não se tomava nem banho. Lavava o rosto, passava perfume e pronto. A partir da quarta feira santa, só se comia peixes e ovos. Verduras, legumes e frutas eram liberados mas na sexta era jejum, pra família inteira." Ernesto fez uma pausa e tomou um gole de água. Fátima fechou a torneira por causa do barulho e se juntou a eles. -"E a molecada? Quais eram as brincadeiras? Era permitido brincar na semana santa?" Perguntou Natália. Ernesto olhou para Fátima. -"Na sexta feira santa não podia lavar louça. Ficava tudo sujo e amontoada na pia até a manhã do sábado. A molecada ia pra rua jogar queimada ou pular amarelinha pois em casa estavam todos de preto e com semblante triste. Os mais fervorosos faziam jejum, começando na sexta e ia até o sábado a tarde, sem comer nada. A mãe cobria as imagens de santos de casa, com pano roxo, igual fazia nas igrejas. Os mais velhos diziam que, aquela pessoa que aparecesse em nossos sonhos, na noite da sexta feira santa, seria a pessoa com quem a gente se casaria no futuro." As crianças estavam curiosas. -"Porquê tanta proibição?" Ernesto olhou para Eduardo com carinho e admiração pela pergunta. -"Tradição. Era respeito pois acreditamos que a semana santa era especial pois Jesus morreu por nós. O filho de Deus nos amou tanto que deu a vida por nós. Isso é muito amor. Imagina só, Jesus forte e poderoso, filho de Deus, se fazer homem? Vir a terra evangelizar e morrer por nós? Isso é maravilhoso, é o maior acontecimento da humanidade e motivo para agradecermos todos os dias, sempre. A sexta feira santa era sagrada pois Cristo estava morto e sepultado. Era pecado ferir a terra onde o Senhor estava repousando. Fazer buraco, trabalhar na lavoura, nem pensar. Não se tirava leite das vacas e se o fizesse, o leite era doado aos pobres. Tinha muita coisa estranha, como a malhação do Judas, que eu ainda criança só fui entender depois. Rapazes faziam um boneco de pano e palha, pendurado num poste ou árvore. O boneco do Judas, simbolizando o traidor de Jesus, era malhado e despedaçado. Hoje em dia, fazem o boneco do Judas com a cara de um político ou uma celebridade chata, essas coisas. Alguns rapazes iam, de madrugada, nas chácaras e fazendas, roubarem galinhas. Era tradição também e participei uma vez, sendo mordido por cachorros ferozes." As crianças riram. -"Me lembro que, certa vez roubaram quatro galinhas de minha mãe. Ela ficou muito brava. Três dias depois, alguns rapazes de outro sítio vieram vender galinhas pra ela. Entre as dez galinhas que ela comprou estavam as que foram levadas do galinheiro dela. Na sexta feira santa, ao invés da bacalhoada tradicional com batata, um costume português, a gente da roça fazia peixe frito, assado ou peixe cozido com côco fresco. Era uma delícia. Fui conhecer bacalhau só quando já era adulto, era muito caro. Não tinha refrigerante, só suco natural de laranja ou de groselha. Refrigerante era caro e só tinha no armazém da vila. Os comerciantes da vila não abriam as lojas, tudo fechado no dia sagrado. Os casais de namorados respeitavam o dia santo de sexta feira, nem davam beijo. Nada de bebedeiras pois era uma afronta aos valores cristãos. Vinho estava liberado, desde que moderadamente. Minhas tias vestiam preto, os vestidos longos, rezando o rosário o dia todo e de olho na molecada." Natália segurou o riso, imaginando a cena. -"Essa tradição da Via Sacra, como começou?" Perguntou Fátima, curiosa. -"Isso é importante, querida. A tradição de seguir a Via Sacra começou entre os séculos XI e XIII, quando poucos cristãos puderam ir a Jerusalém para visitar os lugares onde Jesus teria passado. Fizeram o caminho por onde o divino mestre passou, a caminho do Calvário, e marcaram as estações seguindo o que o evangelho dizia. Como era impossível a todos os cristãos irem a Jerusalém, a Via Sacra como a conhecemos hoje, com suas estações, reproduz as paradas de Jesus e seus momentos dolorosos. São quatorze estações e a décima quinta representando a ressurreição do Senhor, nossa Páscoa." Eduardo interrompeu. -"Pra mostrar que não terminou na cruz e na morte. Ele ressuscitou." Natália o abraçou, sorrindo. Ernesto prosseguiu. -"Isso mesmo, Eduardo. A semana santa começa no domingo de Ramos. Comemoramos a entrada de Jesus em Jerusalém, montado num jumentinho, símbolo da humildade, aclamado pelo povo que grita Hosana ao filho de Davi, aquele que vem em nome do Senhor. Erguem ramos de oliveira e palmeiras. Jesus tinha ressuscitado Lázaro, há pouco tempo, era visto como o Messias anunciado aos profetas antigos. O povo queria um Messias libertador social, um político mas Jesus era diferente. Era um libertador mas da opressão do pecado, um pregador do perdão e do amor. No decorrer da semana santa vemos a traição, prisão e julgamento de Jesus. O povo agora grita Crucifica-o! Jesus é humilhado e maltratado em sua Via Sacra. Experimenta a solidariedade e ajuda do Cirineu, o consolo de Madalena e das mulheres, a dor e o olhar de sua mãe, o diálogo com o bom ladrão crucificado a seu lado, a solidão e a morte. Na segunda feira santa recordamos a prisão de Jesus. Na terça feira santa é dia de penitência e a memória das dores de María. Na quarta feira santa é o dia das trevas. Dia da última ceia de Cristo com seus apóstolos. Temos a procissão de Nosso Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores. Na quinta feira santa há a celebração do Crisma. A instituição e bênçãos dos Santos Óleos, pelo bispo. Cerimônia do Lava Pés, lembrando o Mestre que deu-nos o exemplo, aquele que quiser ser o maior, seja o servo dos irmãos. Memória da instituição da Eucaristia, quando Jesus se dá no pão e no vinho. Na quinta feira é dia de vigília frente ao Santíssimo, o sacrário. Na sexta feira santa, a liturgia é solene. Paixão e adoração da cruz. Dia da crucificação de Cristo. O sábado de aleluia é dia de oração e jejum. Dia de choro pela morte do Senhor. Dia de vigília pascal. Nas quatorze leituras vemos a história da salvação do povo de Deus. Chegamos ao domingo de Páscoa. Dia da ressurreição de Jesus. É o dia mais importante pra nós cristãos pois é o dia da vitória sobre a morte. A comemoração da Páscoa se estende por cinquenta dias, até o dia de Pentecostes, a descida do Espírito Santo sobre Maria e os apóstolos reunidos no tabernáculo." Eduardo bocejou. -"E tinha ovo de chocolate pra vocês, quando crianças?" Perguntou Natália. -"Nada. A mãe e minhas irmãs mais velhas pintavam ovos cozidos. Ovos de galinha mesmo. Escondiam os ovos pela casa e quintal. A garotada ia procurar os ovos, dentro de armários, debaixo das camas e vasos de flores, era muito divertido. No domingo da Páscoa tinha a macarronada especial, colorida com colorau, feito de urucum. Frango ao molho pardo. Um leitão assado, salada e maionese decorada com uma rosa feita de tomate. Era um almoço simples e saboroso, feito com amor." Fátima estava sorrindo. As crianças estavam satisfeitas e abraçaram Ernesto, gratas. -"Que legal. Eu gostei demais. A Páscoa é daqui a duas semanas e vamos tirar uma boa nota com essa entrevista. " Eduardo e Natália passaram a entrevista para o caderno. João Paulo chegou do trabalho, a noite. O esposo de Fátima cumprimentou as crianças e Ernesto. Após o jantar, ele parecia preocupado. -"João Paulo, você secou a panela duas vezes?" Ele riu. -"Tenho que achar uma pauta para o jornal, pra Páscoa. O editor chefe pediu algo diferente, sabe? Todo ano sai matéria sobre a tradição de coelhos, como fazer ovos de páscoa em casa , os tipos de chocolate, bacalhoada. O que eu faço?" Fátima chamou os filhos. -"Tragam o caderno, por favor. Mostrem o trabalho de Páscoa ao papai." Eduardo e Natália foram ao quarto. Voltaram com o caderno. João Paulo sentou-se e leu a entrevista. -"Semana santa na roça! Eu adorei. É original e curioso. Posso colocar isso no jornal? Com fotos, vai ficar maravilhoso." Eduardo e Natália concordaram. No jantar do dia seguinte, Fátima fez maionese e pediu que Ernesto fizesse uma flor de tomate. Eduardo e Natália estavam curiosos. João Paulo nunca tinha visto aquilo. -"Descasque o tomate como uma laranja, Natália. Isso mesmo. Agora enrole e abra um pouco. Pronto. É uma rosa linda." A menina colocou a rosa sobre a maionese. Eduardo quis fazer também. Ernesto foi embora no dia seguinte. -"Tenho que voltar pra Minas. Obrigado, minha sobrinha." Fátima o abraçou. Eduardo e Natália se despediram de Ernesto. -"Pro senhor, tio. Uma santa e feliz Páscoa." Eduardo entregou-lhe um grande ovo de Páscoa. -"Quando menino não ganhou nenhum ovo de chocolate, agora ganhou." Acrescentou Natália. Ernesto se comoveu. -"Muito obrigado, queridos. Pra vocês uma feliz Páscoa, também. Vocês aprenderam que o verdadeiro sentido da Páscoa, que é a ressurreição de Jesus. O maior ato de amor de Deus a humanidade." FIM