Sintonia Plena

Naquele fim de mundo o tempo se arrasta preguiçosamente. Dias e noites são sempre iguais.

Quando cheguei lá estava ainda me recuperando de uma separação traumática.

Meu casamento durou tão pouco. Apenas o tempo de conhecermos nossas diferenças e de nossa filha nascer.

A separação em si eu encarei com dignidade e cabeça erguida. O amor foi sendo minado e já não existia a paixão do começo. Mas me separar de minha filha doía muito. A saudade daquele tiquinho de gente me deixava num baixo astral que corroía minha energia. No entanto sabia que ela precisava ficar ao lado da mãe. Tinha apenas dois anos e eu não poderia suprir suas necessidades. Ainda mais naquele lugar.

Mas sempre que dava eu ia ver meu anjinho e dar muitos abraços e beijos.

Estava ali junto com outros geólogos e com engenheiros para a prospecção de um terreno. Sabia que o trabalho seria longo e difícil, mas estava fazendo o que eu amava.

E gostava também de conhecer lugares, pessoas e seus costumes, tradições e história.

Sabia que não ia me sentir entediado, apesar da pasmaceira dali.

Eu usava meu tempo livre para me aproximar da gente daquele lugar. Era uma comunidade onde havia muita pobreza. E lá do outro lado muita riqueza e ostentação como geralmente é em todo lugar.

Eu me metia no meio do povo e sempre encontrava uma boa prosa. Em pouco tempo já era conhecido naquela comunidade. Sempre tive um senso de justiça muito aguçado e nunca entendi as enormes diferenças sociais.

Naquela convivência diária eu via coisas que me deixavam triste ou revoltado.

Vi algumas garotas se prostituíndo para sobreviver e viver com o mínimo necessário ao ser humano. E vi aqueles que se aproveitavam dessas garotas sem nenhum escrúpulo e pagavam uma miséria por aquele, dito, trabalho delas.

Vi crianças morrendo sem assistência médica e sem uma dieta adequada.

Vi mães solteiras que não tinham condições de cuidar nem de si e estavam com uma vida nas mãos pra cuidar.

Vi idosos explorados por jovens que viviam sem querer trabalhar.

Vi drogas lícitas e ilícitas destruindo muitas vidas.

Vi famílias desestruturadas onde os pais espancavam os filhos, não davam educação ou escola a eles.

Mas vi também muita beleza de uma gente simples e de boa índole. Eles me convidavam para um café, um almoço e a prosa ia longe. Eu escutando com atenção e eles se sentindo os mais importantes contadores de história. E eram.

Fiz uma porção de amigos e eles me chamavam pra pescar, para conhecer a região e para diversos eventos.

E o tempo ia escorrendo no ritmo daquele lugar. Trabalhávamos muito, mas eu gostava pois assim não tinha tempo de sentir tanta saudade da minha pequenininha. E sempre que podia lá estava eu grudado naquela menina tão amorosa e carinhosa.

Certo dia, quando eu estava voltando do trabalho de campo, vi uma confusão em uma casa. Quando me aproximei, constatei que havia ali uma criança, de menos de dois anos, machucada. Aquilo doeu meu coração. Eu me ofereci pra ajudar. Descobri então que a mãe estava bêbada ou sob efeito de drogas e bateu na garotinha.

Quando vi aquela garotinha machucada, chorando e sangrando em algumas partes do corpo eu tive vontade de pegá-la no colo e protegê-la. E então ela me olhou com os olhos de quem pede socorro e eu simplesmente chorei e pedi a Deus que a protegesse.

Pensei em minha filha.

Os Conselhos Tutelares em meados dos anos 1990 ainda estavam em estruturação, pelo menos naquele lugar. Mas chegou e fez seu papel.

A garotinha foi levada para o hospital da cidade à qual pertencia aquela comunidade, há vinte quilômetros dali. E eu num instinto fui também. Chegando lá o atendimento estava tardando. O atendimento era precário naquele lugar e eu decidi que pagaria todo o tratamento da menina.

Ela ficou internada muitos dias e todos os dias eu ia vê-la. Descobri que ela se chamava Ana Luiza. Coincidentemente minha filha também era Ana, só que Ana Beatriz.

Quando saiu do hospital ela foi para um abrigo pois o juiz se recusou a devolvê-la para a mãe agressora e a pequena não tinha pai reconhecido.

Eu ia visitá-la todos os dias e ela começou a me chamar de pai.

Eu sentia uma sintonia entre nós e como sou espiritualista e acredito em muitas vidas, pensei que tínhamos alguma ligação de vidas passadas.

A mãe, ao que consta, desapareceu e nunca mais procurou a filha. Talvez, em sua concepção torta, tenha se livrado de um fardo.

Num feriado viajei para ver minha filha. No dia que voltei Ana Luiza estava com febre e bastante prostrada.

Ao me ver ela levantou de seu berço e me estendeu os bracinhos. Emocionado eu chorei e abracei aquela criaturinha tão frágil e delicada. E ela foi melhorando.

Meu tempo naquele lugar estava terminando e eu não sabia o que fazer com aquele vínculo que criei com a minha princesinha.

Este fato estava me incomodando e tirando meu sono.

E chegou o dia de me despedir dela. Ela, agora com pouco mais de dois anos, não entendia a dimensão daquele abraço e se abandonou em meus braços.

Eu saí chorando e ela sorria pelo grande abraço que ganhou.

De volta pra casa eu não tinha paz. Os olhos, o sorriso, o abraço de Ana Luiza me perseguiam dia a dia.

Eu tinha a guarda compartilhada de minha filha e a presença dela me alentava um pouco.

Pouco mais de um mês depois, eles me ligaram do abrigo dizendo que Ana Luiza estava doente, se recusava a alimentar e tinha febre constante.

Eu não levei um minuto para tomar uma decisão. Ia buscar a minha filha de coração.

Consegui uma licença e fui ao encontro da minha pequena princesa.

Ao me ver o sorriso dela se abriu e seus olhos brilharam. Num abraço ela demonstrou todo o seu amor, fragilidade e dependência.

Em pouco dias, com a ajuda das assistentes sociais, consegui a guarda provisória de Ana Luiza, até que a adoção fosse oficializada.

Voltei pra casa com minha querida filha.

Muitas pessoas não compreenderam e me recriminaram.

Mas o meu amor era maior que tudo. Eu mudaria a vida daquela criança com meu amor e ela me ensinaria a ser melhor. Nossos destinos eram um só.

A princípio Ana Beatriz sentia ciúmes, mas depois se tornaram irmãs amorosas.

Foram criadas juntas, embora a mãe de Ana Beatriz se opusesse àquela convivência e tenha tentado até revogar a guarda compartilhada. Mas nunca conseguiu. Eu sei que sempre fui um excelente pai.

Criei, eduquei e formei minhas duas filhas.

Vivi, diverti, namorei, amei algumas mulheres e fui feliz.

Hoje tenho o orgulho de ver minhas filhas vivendo suas vidas com responsabilidade, trabalhando, independentes e felizes.

Nunca me arrependi de fazer aquela criança indefesa e frágil minha filha amada.

Ela nunca quis conhecer a mãe. Pra ela a minha presença sempre foi suficiente.

(Obra de ficção, fantasia sem nenhuma relação com a realidade.)

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 01/04/2023
Reeditado em 02/04/2023
Código do texto: T7754215
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