Histórias que gosto de contar – A fugitiva
Histórias que gosto de contar – A fugitiva
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 28 de março de 2023
Cansada de viajar por estradas desertas, com medo de ser apanhada e presa pela polícia política de seu país, a moça loira, filha de um homem rico do setor agroindustrial e descendente de europeus, foi despojada de todo o seu patrimônio depois da morte trágica de seus familiares, por motivos políticos-ideológicos. Salvou-se porque não se encontrava em sua cidade na hora do infausto acontecimento, que vitimou sua família.
Ficou sabendo da notícia pela televisão, quando se encontrava na rodoviária pronta para retornar à sua casa. Precavida, não telefonou para ninguém, nem para o seu namorado. Ali mesmo decidiu, teria que sair do país, o mais breve possível, principalmente pelo papel de ativista que vinha desempenhado ultimamente. Verificou em sua mochila a quantidade de dinheiro que ainda restava daquele passeio à uma cidade próxima. Não era muito, mas calculou, se não fosse descoberta, daria para mais uns três dias. Teria que economizar, pensou ela.
De repente, lembrou-se que estava com o seu celular, instrumento de fácil localização pela polícia. Pegou um papel e caneta, tirou algumas informações daquele prestativo instrumento de comunicação, anotando as coordenadas para a sua fuga, alguns números de telefones, escrito em códigos, para posterior uso, retirou o chip, quebrou-o ao meio, enterrando-os em seguida. O aparelho de última geração, ela o desfez em pedações, jogando-os em diferentes locais, em um parque em frente à rodoviária. Era pura precaução, pensou baixinho.
Depois desse exercício para se ocultar, sentou-se em um banco do parque, em local pouco iluminado, e chorou. Apenas chorou, não quis imaginar a cena que acontecera com sua família, seus pais e irmãos, da tragédia que se abatera sobre eles. Voltou à rodoviária, comprou uma capa de chuva, estava chovendo naquela hora, um pequeno cobertor, sabia que iria passar frio, tomou uma xícara de café bem quente, como havia recomendado à moça que fazia o café, fez o sinal da cruz e retirou-se daquele recinto, sem nem olhar para trás. Esgueirava-se discretamente, para não ser notada. Não tinha certeza se o paradeiro dela era do conhecimento da polícia.
Já na estrada, que conhecia muito bem, pelos anos de férias ali passados, tirou um mapa da mochila, era acostumada a fazer longas caminhadas solitárias, e o seu destino agora, era incerto. Mas, tinha que ir adiante, marcou quantos quilômetros e quantos dias viajaria, até à Cidade do Rio Branco, no Acre. Teria que percorrer, de onde se encontrava, até Santa Elena de Uairén, na fronteira, 1.300 km, de ônibus, seria uma viagem de mais de 48 horas, percurso de menor custo, tendo em vista o baixo valor da gasolina, naquele país. O pouco dinheiro que restava, dava para pagar e sobrariam alguns Bolívares para comida e água.
Conhecia as histórias de outros venezuelanos em fuga para o Brasil. Tinha que chegar até Pacaraima, em Roraima, único ponto de entrada oficial entre o Brasil e a Venezuela. Depois conseguir transporte até Boa Vista, mais 215 km, ou então, ir a pé até o seu destino, pela BR 174, em um calor de 45ºC. Seria uma parada dura, pensou.
Não tinha medo de nada disso. Era esperta, corajosa, intrépida, sabia que teria de seguir ao seu destino. Esgueirava-se pelo caminho, sorrateiramente. Ser reconhecida era o maior perigo. Acostumada a ser notícia nas revistas e jornais locais, principalmente nas colunas de fofoca, dada à sua condição de filha de um dos homens mais ricos de seu país, achava que seria um alvo certo para os caçadores de recompensa, oferecida pelo establishment venezuelano.
A moça loira conseguira chegar sem ser notada, até a fronteira, em Santa Elena de Uairén, pequena cidade com um pouco mais 30 mil habitantes, conhecida como destino turístico de nacionais e estrangeiros, o portal para Savana Grande, um gigantesco cerrado com cachoeiras e matas tropicais de galerias.
Os habitantes dessa localidade já estavam acostumados a ver viajantes de mochila nas costas, e não se preocupavam em saber qual o destino deles. Com um “ufa” de enfado desceu do ônibus, de cabeça baixa, usando uma calça ajustada ao corpo, com alguns pequenos cortes na altura dos joelhos, o tênis sem marca, um boné com logotipo de time de futebol, e sua mochila preta. Olhou para um lado e para o outro, procurou a estrada de saída para o Brasil, pela BR 174. Aqui, olhou para o lado de sua pátria, enxugou as poucas lágrimas que desciam pelo seu rosto, e falou alto: adeus Pátria querida, não sei se um dia voltarei, já não tenho nada a fazer aí.
Foi o último dia que aquela moça corajosa foi vista. Se mudou de nome, ninguém sabe.