Relacionamento.com (Capítulo três)

           

 

                Alejandro estava diante da nova turma do curso. Por se tratar de uma escola de idiomas, a faixa etária dos alunos estava longe de ser uniforme. O mais novo entre eles tinha apenas quinze anos, enquanto o mais velho, um funcionário público que viajaria para a Espanha nas férias em seis meses, tinha quarenta e cinco. Propositalmente, Alejandro não havia dito seu nome ainda. Em lugar disso, foi ao quadro negro e o escreveu. Em seguida, virando-se, disse à turma:

 

— Bom dia a todos!

 

Um rapaz de cabelo bicolor e unhas pintadas de preto, com florzinhas lilases, disse:

 

— Não me senti representado nessa saudação! O correto seria: Bom dia a todos, a todas e a todes!

 

Todos olhavam para Alejandro a fim de ouvir que resposta daria ele ao questionamento do rapaz.

 

— Qual é mesmo o seu nome, jovem? – perguntou ele ao aluno.

 

— Marcelo, mas prefiro que me chamem de Taylane! E quero frisar que esse nome não é nem feminino nem masculino!

 

— Bem, Marcelo Taylane… – Alejandro pegou o giz para escrever no quadro.

 

— Apenas Taylane, por favor! – o rapaz enfatizou.

 

O professor ignorou a observação e o arguiu:

 

— Diga-me… de onde vem a língua portuguesa? Qual a sua origem?

 

O rapaz pensou por uns instantes e respondeu:

 

— Do latim? – era mais uma pergunta que uma resposta.

 

— Correto, jovem! E no latim havia o gênero masculino, o feminino e o neutro. Obviamente não estamos falando de gênero biológico, mas de gramática, façam-me o favor! E quando convertido para o português, o gênero neutro passou a ser o masculino que, inclusive, abrange até o feminino em momentos específicos, assim como acontece com o feminino, que por vezes também abrange o masculino. Assim sendo, quando falei "bom dia a todos", já incluí todas as pessoas presentes aqui. Dizer bom dia a todos e a todas é dizer algo redundante, desnecessário. E dizer bom dia a todes é falar outro idioma que não o português!

 

— E quem não se sente representado nem pelo masculino e nem pelo feminino? – insistiu Marcelo.

 

— Nesse caso eu recomendaria discutir isso com o pessoal da ciência. Sou apenas um professor de espanhol. Até onde sei, o último acordo ortográfico neste país ocorreu em 2009 e nenhuma das mudanças realizadas invalida o que acabei de dizer. Caso isso ocorra no futuro, mudarei o modo como faço minha saudação.

 

— Agora, vamos iniciar nossa aula de hoje! Escrevi meu nome no quadro de propósito. Aquele que souber como se pronuncia pode ler para a classe? – o sotaque espano em sua voz era sutil, porém não inexistente.

 

Uma jovem aparentando uns vinte e três anos levantou a mão. Ela tinha um sorrisinho intrigante no rosto.

 

— Diz-se, Alerrandro! E por falar nisso, meu nome não se pronuncia da maneira que falou quando fez sua confirmação de presença.

 

Ele olhou rapidamente a lista de nomes. Buscava algum que pudesse ser pronunciado de maneiras distintas. Encontrou Joana e entendeu que esse devia ser o nome da jovem. Por ser neta de espanhóis, a jovem herdou o nome da avó e seu nome era pronunciado segundo as regras espanas.

 

— Peço desculpas pela pronúncia errada, Joana! – ele olhou para ela novamente.

 

— Sem problemas! Já estou mais que acostumada com isso! – ela deu de ombros.

 

— Bem – ele se voltou à classe –, como podem ver, em espanhol o jota tem som de duplo erre. Alguns têm o hábito de dizer que esse idioma é um eco do português, mas verão que na verdade as coisas não são bem assim...

 

                                                    ***

 

Depois da aula, Alejandro estava em sua mesa fazendo algumas anotações no momento em que uma das alunas parou em pé diante dele. Ela tinha dezenove anos, mas aparentava uns vinte e cinco por conta de seu jeito sério e o tipo de óculos que usava.

 

— Posso ajudar em algo, Rafaela? – ele levantou os olhos.

 

— É Renata! Rafaela era a de cabelo ruivo à minha frente! – havia um tom de indignação na resposta da jovem.

 

— Posso ajudar em algo... Renata? – ele consertou após uma pausa propositalmente dramática.

 

— Por que não tem uma namorada? – ela disparou.

 

— O que disse?!!!

 

— Por qué no tienes una novia? – ela tinha o olhar mais sério que ele já vira numa garota de dezenove.

 

— Eu entendi da primeira vez!! Apenas não sei de onde tirou isso! – ele estava visivelmente envergonhado. Olhou ao redor para ver se mais alguém atentava para a conversa estranha que estava tendo com aquela aluna igualmente estranha.

 

— Que pergunta esquisita, professor! Tirei isso daqui, ora bolas! – ela mostrou seu telefone. Estava logado num aplicativo de relacionamentos e com o perfil de Alejandro à mostra e indicando que estava online.

 

Ele imediatamente pegou seu smartphone e privou as fotos que haviam disponíveis.

 

— Nossa, suas fotografias sumiram, professor! Mas não se preocupe. Caso precise, tenho print de todas elas aqui, ok? Na verdade não só das fotos, mas do perfil inteiro! – ela simulou espanto e em seguida fez cara de alguém solícito.

 

— Ok, garota! – disse ele com a expressão mais séria que pôde estampar no rosto – Por que está fazendo isso? O que quer de mim?

 

A jovem o perscrutou por alguns instantes e então respondeu:

 

— Quero apenas ajudar um careta que não vai conseguir arrumar ninguém com esse perfil sem graça! – não havia um sorriso em seu rosto e tampouco ela mudou a expressão.

 

Alejandro não sabia se ria ou ficava bravo com aquela aluna intrometida e folgada. Então, com os cotovelos apoiados sobre a mesa, e o queixo sobre as mãos entrelaçadas, respondeu:

 

— Quantos anos têm, Rafaela?

 

— Renata... E acha mesmo que minha idade define meu nível de seja lá o quê esteja analisando? – as palavras da jovem eram de uma seriedade visceral.

 

— Bem, se é tão experiente assim, por que está sozinha? Pois, se está no aplicativo, suponho que esteja! – ele inquiriu.

 

— Bom, Sr. Foto-no-espelho-do-banheiro, estou sozinha faz – ela olhou o relógio. – vinte e seis horas e trinta e cinco minutos. Isso porque ontem chutei o idiota com quem fiquei nos últimos seis meses e meio.

 

— Ora, se era um idiota e ainda assim ficou com ele por seis meses... e meio – ele enfatizou “e meio”–, isso faz de você o quê? Além disso, qual o problema com minhas fotos no banheiro?! Não estou nu!

 

— Faz de mim alguém sem paciência para caras de vinte e cinco anos cujo maior objetivo na vida é bater seu recorde num jogo online tão idiota quanto ele. – ela tirou os óculos e os limpou com a ponta da blusa.

 

— E quanto às suas fotos, pelamordeDeus, quem vai querer sair com um cara cuja vida cheira a chatice? Você até que é bonitinho, mas foto no armário do banheiro não dá, né?

 

Ele ia dizer algo, mas ela emendou:

 

— Sua fotografia mais interessante é aquela em que está sentado exatamente aí. Aliás, está com essa mesma roupa . Foi hoje, antes da aula, né? – ela tinha um olhar inquisitivo.

 

— Você é muito enxerida, sabia? – ele teve que rir. Não tinha como não achar graça daquilo.

 

— Já me disseram isso algumas vezes! – pela primeira vez ela esboçou algo semelhante a um sorriso.

 

— Confesso que não sou bom com fotos mesmo! – ele suspirou. – Desde criança, pelo que me recordo!

 

— Isso é só uma confissão ou um pedido de ajuda? – ela agora abriu um sorriso largo.

 

— Por que está tão interessada em mim? – ele simulou certa altivez.

 

— Desculpe desapontar, mas não faz o meu tipo, professor! Não gosto de caras muito certinhos! No fim, eles acabam sendo os piores.

 

— Mas? – ele instigou.

 

— Mas se deixar, posso ajudá-lo a criar um perfil irresistível! Vai conquistar oitenta por cento das barangas desse aplicativo!

 

— Não quero isso! Procuro apenas uma pessoa legal, não um caso a cada final de semana. – ele franziu a testa.

 

— É o que todo mundo diz... Até descobrir que essa “pessoa legal” não existe, é utopia! É como procurar pelo príncipe encantado.

 

Alejandro pôde perceber naquelas palavras que a jovem já trazia na alma algumas feridas. Provavelmente fora machucada em algum relacionamento pelo caminho. Na verdade, a impressão que ele teve foi a de que ela já havia se decepcionado mais de uma vez. Todavia, isso não soava como algo novo. Ele já tinha observado que boa parte das moças do tal aplicativo demonstrava certa instabilidade emocional e enorme dificuldade em confiar e se relacionar novamente. Mas não era para menos, pois muitas vinham de algum relacionamento falido, alguns de longa duração. E os porquês do término dessas uniões iam desde traições, brigas sem fim, agressão física e um sem número de outros motivos. O tom, por vezes bastante hostil nas descrições, e as auto afirmações que apontavam exatamente o contrário, enchiam os perfis de mulheres com idades, grau de instrução, profissão e etnias diferentes. Antes de seu cadastro, ele não imaginava que as coisas tivessem essas configurações. Mas outra coisa que observou foi que, a despeito de reclamar do comportamento dos homens, um número espantoso de moças já se comportava de maneira semelhante.

 

— Não acha que é nova demais para se tornar tão descrente? – ele finalmente falou.

 

— Penso que não! Deixei de acreditar em bicho papão aos seis anos e em Papai Noel aos sete!

 

— E na humanidade? Com quantos anos? – ele alfinetou.

 

— A humanidade não produz seres mitológicos de carne e osso, professor! Eles estão apenas nas fábulas!

 

Alejandro percebeu que estava indo na contramão. Não conseguiria nada se continuasse naquele caminho pedregoso. Decidiu mudar a tática.

 

— O que seria um homem perfeito pra você, Rafae...Renata?

 

— Não sei. Ele não existe!

 

— Não disse que existe. Perguntei como seria um sob sua ótica!

 

— Um que não minta, talvez! Já é um ótimo começo! Mas vamos voltar ao foco. Não sou eu quem precisa de ajuda.

 

— Acredita mesmo nisso? – ele tinha uma expressão séria.

 

— Acredite, meu perfil no aplicativo está aos píncaros! Vamos ver como anda o seu? – ela tinha um tom levemente zombeteiro.

 

— Renata – ele cansou daquilo –, agradeço seu interesse em elevar minha auto, mas estou bem, de verdade! Não preciso de ajuda com isso!

 

Como resposta, ela pegou novamente seu telefone. Mexeu por alguns instantes e imediatamente o aparelho dele sinalizou uma mensagem.

 

— Assim que mudar de ideia, pode me procurar! – ela virou as costas e caminhou na direção da porta. A essa altura, já não havia mais ninguém na sala além dos dois.

 

— Como conseguiu meu número?– arguiu ele, num misto de assombro e indignação.

 

— Por aí... – ela respondeu enquanto saía porta afora.

 

Ele abriu a mensagem...

 

"Quando quiser mudar esse perfil cafona é só entrar em contato. Não costumo fazer isso de graça, portanto, aproveite a chance.

Renata S. Almeida

*Personal Stylist

*Analista de Perfis."

 

Alejandro pôs mais uma vez os cotovelos sobre a mesa e apoiou o queixo sobre suas mãos entrelaçadas.

 

 

Netokof
Enviado por Netokof em 27/03/2023
Reeditado em 04/04/2023
Código do texto: T7750116
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