Primeira vez

     Ia fazer 18 anos, caía um dia antes do Carnaval. As aulas de patinação no gelo iam dando uns cobrinhos e ele ia se dar um presente: ir ao Rio e conhecer o mar.

     Tudo planejado: pegava ônibus sexta de noite, chegava sábado de manhãzinha, tomava um café na rodoviária e seguia pra Copacabana. Depois do batismo de água salgada, ia ao shopping onde havia patinação, via as patinadoras e voltava à noite para BH. Se arrumasse uma carioquinha pra dar uns amassos, aí era mamão com açúcar.

     Fez 18 anos sem festa, comprou uma sunguinha na Mesbla. Chegou ao Rio, rodoviária apinhada, sábado de carnaval, pegou o ônibus pra Copacabana. Tirou a roupa, a sunguinha já no corpo, e ficou olhando o trem enorme que não tinha fim. Incansável, a água vinha e voltava, ia e vinha, igualzinho viu no Cine Candelária, dizem que vai até na África. Será?

     Depois de uns minutos, detectou um problema: onde guardar a roupa, dinheiro, identidade, óculos de sol e passagem de volta, enquanto estivesse na água? Enquanto pensava, jogou a toalha na areia e sentou-se ao lado de um rapaz. Conversa vai e vem, coincidência, o cara era salva-vidas e também instrutor de patinação, tem base?  Já combinaram pra dar um rolé num rinque de tardezinha, em poucos minutos estavam íntimos. Vanderlúcio era sangue bom. Com pouco já tinha liberdade pra pedir:

     - Derlúcio, dá pra você olhar minhas coisas, enquanto eu dou uma chegadinha na água? É a primeira vez no Rio e no mar.

     - Mas claro. A primeira vez num marzão desses tem que ser tranquilo. Vai, eu olho suas coisas, falou o sangue-bom.

     Foi correndo, coração acelerado. Olhou os banhistas, aprendeu a pular quando vinha a onda, não podia ser mais feliz que debaixo daquele sol, em contato com a água. Cansado de tanta novidade, voltou à areia. Ia chamar Vanderlúcio pra comer pastel. De frente para o povo, viu que tudo tinha mudado de posição, até o Vanderlúcio.

      Aliás, cadê o Vanderlúcio? Tinha sumido. Andou, andou, andou, pra frente, pra trás, tinha muita gente, homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, vendedores de todo tipo, barracas, sombrinhas, um mundaréu... Ficou meio tonto, perdido, ofuscado, precisava dos óculos de sol. Desistiu. E agora? Sem dinheiro, sem roupa, sem passagem, sem óculos de sol... Na tia do chuveirinho, procurou socorro:

     - A senhora não viu um rapaz louro com sunga azul por aí? Ele é o Vanderlúcio, salva-vidas e instrutor de patinação. Não veio ninguém trazer uma passagem, dinheiro e calça jeans? É meu. Dona, tem dó de mim!!!

      Depois de quase uma hora, esperando o Vanderlúcio, caiu na real: já tinha ouvido falar de mineiro bobo enganado por carioca. Era mais um. Deu vontade de chorar, se via o Vanderlúcio, matava ou mandava matar. Que presente de aniversário! Pediu à tia do chuveirinho alguma coisa pra vestir. Ela tinha uma sunga do Super-Homem.   alguém tinha esquecido, tinha a capa também.

      Aceitou. Fazer o quê? Sunguinha era o que tinha, sunguinha ia vestir, a capa só para dar mais segurança. E até dinheiro pro almoço e passagem a tiazinha emprestou. O menino só tinha 18 anos, podia ser seu filho. Ele prometeu que viria pagar. Ela não se preocupou. Se pagar tá bom, se não pagar, fazia uma caridade, ganhava pedágio para o Reino dos Céus.

      O problema mesmo começou no ônibus. O chofer não achou graça nenhuma nos trajes do rapaz.

      - No meu ônibus não entra gente pelada.

      A polêmica se arrastava, os passageiros incomodados, o Super-Homem se explicava, o chofer irredutível:

     - Pelado não viaja no meu ônibus.

     Os passageiros, loucos pra fugir do Rio, cair na estrada e passar o Carnaval em Minas, começaram um coro, ponteado por salvas de palmas:

     - Deixa, deixa, deixa...

Um cara alto, tipo líder de torcida, corpo de halterofilista, argumenta:

     - Motorista, é Carnaval, ele tá fantasiado de Super-Homem. Isso é ilegal? Deixa de complicar.

     O chofer, vencido pela compaixão mineira, pelo espírito de Carnaval e pelo horário a cumprir, sentou-se na cadeira, acertou o encosto e mandou ver.

     O Super-Homem, herói por um dia, cansado de tantas emoções, apagou. Na rodoviária de BH resolveria o resto. Ainda bem que era Carnaval.

 

(Texto relacionado: A vez do mineiro)

https://www.recantodasletras.com.br/causos/7938069

 

William Santiago
Enviado por William Santiago em 24/03/2023
Reeditado em 16/04/2024
Código do texto: T7747652
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