Histórias que gosto de contar – O homem pássaro
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 21 de março 2023
Antônio, 96 anos de idade, casado por 66 anos com Dona Rita, 81 anos. Mulher que Antônio cognominou, simplesmente, de Ritinha Flor, a quem dedicara todo o carinho e amor durante todos esses anos de convivência amorosa. Até nas palavras que a ela dirigia, era sempre carinhoso. Nunca permitira escapar uma só palavra, menos ríspida que fosse, para não a magoar. Sempre estivera ali para amá-la e protegê-la, mesmo em situações que levasse risco para a sua própria vida. Amava-a ao extremo.
Todos admiravam-no, tinha saúde de ferro e não media esforços para ver sua amada sempre alegre e sorridente. Trabalhara duro, mais de oito horas por dia, procurando manter-se em forma. Muitos perguntavam qual o segredo, o amor, ele respondia.
A única preocupação que o atormentava era morrer e ela ficar sozinha. E mais, não queria fazê-la sofrer vendo-o estirado dentro de um caixão, após sua morte. Sabia que, pelas convenções, sua amada teria que passar por isso. Passou dias maquinando uma história para livrá-la dessa agonia, desse desespero, que com certeza, ela passaria. Por certo, gostaria de morrer também.
─ O que vou fazer da vida quando isso acontecer? perguntava choramingando.
Ao ler em um livro sobre pássaros, Antônio constatou que o grifo-de-rüppell, era tido como a ave com capacidade de alcançar altura acima de 11.000 metros, encontrada em grande parte da África. Essas informações lhe ajudaram a armar uma história mirabolante:
“Sonhara que ele era um pássaro, que voava muito alto e lá no infinito, já no céu era recebido por São Pedro, que fornecia uma indumentária de anjo, que lhe ficara perfeita”. Todos os dias contava essa história, ela atentamente ouvia e, ao final, chorava. Quando perguntada por que chorava, dizia:
─ Essa história é linda! Eu choro de alegria em saber que você vai para junto de nosso Deus, pai de todos nós.
Então, os dois se abraçavam e choravam juntos. Passavam alguns minutos abraçados, até ela queixar-se de dores nas costas, situação que vinha agravando-se dia a dia. Ela nunca se lamentara ao marido, não queria vê-lo mais preocupado.
Por seu lado, ele sabia, pela última visita ao médico, que estava com câncer, em estado terminal. Tinha poucas semanas de vida. Recebera a notícia conformado, a ciência já prevê que dentro de alguns anos todos terão algum tipo de câncer, lera recentemente no jornal.
No outro dia, ele desapareceu. Deixara uma cuidadora com a esposa, afirmando que logo mais, retornaria. Não informou aonde iria. À noite, antes de dormir, Ritinha Flor chamou pela cuidadora, pediu-lhe para tirar uma caixa do armário branco, que ficava ao lado de sua cama.
Com a caixa na mão desfez-se do papel que a protegia, abriu a tampa e retirou um vestido branco, o mesmo que vestira no dia de seu casamento, estava um pouco amarelecido, pelo tempo. Colocou-o nos pés da cama e aguardou que a cuidadora viesse trazer seus remédios. Logo após a saída da moça, levantou-se, com as mãos desamassou aquela preciosidade e pôs-se a vesti-lo, deitando-se imediatamente, estava com muito sono.
Nessa mesma hora, Antônio acabara de subir um escarpado, declive extremamente acentuado, de onde se via e ouvia as ondas do mar baterem nas pedras ali encravadas. Demorou-se admirando a paisagem, era a última vez que veria imagem tão linda, pensou.
Rezou baixinho e com a certeza de que não seria encontrado, abriu os braços fazendo-os de asas, fechou os olhos e, como um pássaro, mergulhou no vazio. O voo foi curto, na descida chocou-se com as pedras, visitadas constantemente pelas ondas do mar. Rapidamente, vários peixes, que ali procuravam alimentar-se, limparam o local não deixando sobrar nenhum vestígio de detrito humano.
Pela manhã, a cuidadora entrou no quarto de Dona Rita, e constatando a sua morte, gritou pelo vizinho. Sabia que não conseguiria contato com o patrão, desconhecia seu paradeiro. A polícia foi chamada e logo chegou. Confirmada a morte da mulher, os policiais solicitaram a vinda do pessoal do Instituto Médico Legal, para os procedimentos de praxe, verificando-se a causa mortis como natural, e não havendo nenhum parente ou conhecido a reclamar o corpo, ela foi enterrada como indigente.