O DESPERTAR DO SERINGUEIRO

O DESPERTAR DO SERINGUEIRO

Autores: Moyses Laredo e Moises Lucena

Já lá se vão quase três da madrugada, o silêncio da mata há muito ecoou, os bichos se acomodaram em seus cantos, aqui acolá ainda se ouve a coruja urutau soltar seu canto fúnebre, mas o seu Chico, velho com 80 anos no lombo, já desperto, sempre é o primeiro a acordar, ainda tonto, cansado e sonolento, reflexo do dia anterior. Seu Chico “dorme com as galinhas”, no dizer local, se refere a quem se recolhe quando começa o crepúsculo da noite, como as galinhas, que procuram seus poleiros nessas horas, ele procura o dele. Assim que desperta, se põem a sentar na rede, por um bom tempo, depois, toca um pé no chão para equilibrar a friagem da noite, que refrescou o chão de paxiúba rachada, em seguida põem o outro, dá impulso nos “quartos” e já de pé fora da rede, começa a enrolá-la com as próprias cordas de rami do punho, para prendê-la no canto da parede onde está um grande “esse” feito de vergalhão curvado. Caça com a mão pela travessa da parede, a tatear a lamparina que está sempre junto com o “fósco”, por motivo óbvio, depois de acendê-la, sai focando com o facho ainda fraco, à procura dos seus chinelos, que de costume, sempre deixa debaixo da rede, mas nem sempre é assim, depende pelo lado que se deita, já teve que procurar a banda perto do punho, pois é a última que se solta do pé quando se joga na rede de tucum. A lamparina não consegue alumiar de perto o chão, porque não se pode entorná-la, o combustol (pode ser o querosene, o diesel ou a gasolina) derrama e apaga a chama, é preciso se afastar e de cócoras enxergar o pé da rede se quiser achar os chinelos.

Com a cara e coragem segue arrastando os pés com passadas lentas, até à cozinha, modo de fazer o primeiro fogo do dia. O fogão de barro está lá, só esperando, para o preparo. Às vezes, faltava o pó, aí ele dava com a mão numas folhas secas enfileiradas numa corda em cima do fogão e o chá de cidreira ou capim santo, ficava pronto num piscar dos olhos. O seu Chico com um facão curto na mão, de cabo de madeira grampeado com pino de cobre n’ua mão, e na outra a lamparina, sai ao terreiro a procura dos gravetos secos que amontou no dia anterior no rés-do-chão debaixo do piso, aproveita e pega também uma lasquinha de sermambi (borracha impura) a danada faz um fumacê escuro que empretece a palha de paxiúba da cozinha, mas que pega um fogo que é uma beleza, tira as lenhas socadas embaixo do fogão de chapa de duas bocas, e arruma no queimador, com um palito de fósforo risca na lixa de lado da caixinha, e ateia fogo no sermambi, joga junto com os gravetos, às vezes esparge sobre eles um pouco de querosene tirado da lamparina, salpicava também com a própria lamparina nas lenhas pra ajudar a queimar mais rápido. Com uma tampa amarrotada de uma velha panela furada, abana o fogo que sobe rapidamente, aí ele vai acrescentando mais achas (pedaço de madeira tosca para o lume) de lenhas.

Do quarto onde eu dormia só ficava espiando, gostava de ver o clarão daquela lavareda doida espocando, saíam faíscas incandescentes, como um chuveiro, igual aqueles fogos de artifício nas quermesses da paróquia. Ouvindo o estralar das lenhas de cumaru ferro, ainda na penumbra da madrugada, ficava por um bom tempo me espreguiçando. O fumacê adoidado que levantava afugentava as últimas carapanãs (somente a fêmea ferram, são hematófagas) que ainda atrasadas não tinham se alimentado, coisas delas. A fumaça preta também servia pra espantar, durante a madrugada, as abelhas africanas e aquelas outras pretinhas miudinhas que gostam de entrar nos olhos e ouvidos da gente durante o dia.

Em cima do tamborete fica o pote de barro queimado cheio d’água, de onde é retirada um pouco com a caneca e despejado na chaleira de cima da chapa do fogão, para o preparo do café, ali a água fica até “frevê”. Com poucos minutos, sobe o aroma do verdadeiro café original, plantado, colhido, torrado e moído ali mesmo; que invade os quatro cantos da tapera e está pronto pra saboreá-lo. Entre um golinho e outro na velha caneca de esmalte com algumas lascas de queda, sempre soprando, para livrar os beiços de queimaduras. Seu Chico vai sorvendo aquela bebida perfumada e saborosa que nos anima e esquenta das sempre frias noites do centro da mata. Como é de costume, o velho seringueiro se senta num pequeno tamborete e sem muita pressa, tira do bolso da calça o pacote de fumo e uma bolsinha de maço de papelim, pra enrolar seu cigarro ou porronca, às vezes, utiliza também na falta, palha de milho. Com os dois dedos, indicador e polegar e com a calma e paciência que a natureza lhe deu, agarra uma mínima quantidade de tabaco da marca Canoeiro, o qual ele aprecia mais, enrola no papelim, vai girando, lambendo a folha com saliva e colando na mesma velocidade, daí já está pronto para encostar no fogo e sair pitando. Diz ele que é mais rápido do que se abrir um maço, tirar um cigarro pronto, riscar o fósforo e acender.

Ajeita uma velha espingarda cartucheira calibre 16, bota uns cartuchos também na estopa, porque pode aparecer um bando (catetos), joga a cinta no lado do braço, enfia um terçado 128 com cabo de madeira enrolado com fios de linho de aço, embainhado na cintura. Um balde de ferro com uma estopa dentro, também já estão as tigelinhas de flandres feitas de latas de óleo de cozinha, a cabrita, (faca de cortar as seringueiras) a poronga com lampião com suportes de alumínios para a cabeça. Ainda de madrugada deixa a tapera em meio da densa floresta para percorrer as estradas de seringas, o caminho ainda escuro e o mato molhado com orvalhos da noite, o lampião aceso clareia os caminhos e vai percorrendo as estradas de seringas pitando seu porronca, para no caminho, com a cabrita riscar as seringueiras, no desenho de espinha de peixe e encaixando as tigelas flandres no espinhaço do desenho, para aparar o gotejamento do látex. O corte feito pela cabrita vai sangrando as seringueiras num ritual que se repete nas demais colocações. Depois de percorrer o caminho de ida, retorna recolhendo as tigelas para avaliar a produção do dia. Nas luas cheias o leite aumenta, parece que a lua puxa. A velha espingarda cartucheira 16 serve muitas vezes para espantar umas onças que teimam em querer fazer o velho seringueiro de jantar, na maioria das vezes, serve para levar a mistura pra casa.