Grutas (Clarice Lispector)
"E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu orgulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza - grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno. Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? espantosa, espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e pelas paredes. Entre as pedras o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a pré-história, através de mortes e nascimentos, pareceriam bestas ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu. Tudo é pesado de sonho quando pinto uma gruta ou te escrevo sobre ela - de fora dela vem o tropel de dezenas de cavalos soltos a patearem com cascos secos as trevas, e do atrito dos cascos o júbilo se liberta em centelhas: eis-me, eu e a gruta, no tempo que nos apodrecerá."
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2019 (pp. 32-33)