Pedaço de mim
Antes, eram laranjas. Pequenos frutos. Passaram e a ser limões galegos após determinado tempo - no entanto, essa constatação era um pouco estranha, visto que eram limões doces. Assim, voltaram a ser laranjas.
Nesta trajetória de saber se eram laranjas ou limões, decidi que seria abaixo das folhas daquela árvore que construiria meu lugar para estar com meus pensamentos mais profundos. A posição seria sentado a seus pés, de costas para os frutos e de frente para o muro branco, olhando para o pezinho de limão (esse sim um limoeiro, visto que o plantei diretamente da semente) e para os cactos que foram retirados do telhado logo nos primeiros dias na casa.
Queria olhar para leste e poder apreciar o nascer do sol logo nas primeiras horas do dia. Queria estar ali comigo mesmo, fechar os olhos, escutar o som dos pássaros, das galinhas do vizinho e empreender minhas atividades meditativas.
Para que isso pudesse ser feito de maneira confortável, precisava de um bom acento, de modo a permitir que minha coluna ficasse ereta. Decidi que seria uma pedra, uma daquelas que estavam espalhadas pelo quintal (mas tinha que ser uma das grandes). A primeira escolhida era meio pontuda - tentei utilizá-la por algum tempo, até colocando um acolchoado sobre ela, mas não deu muito certo.
Quando estava sobre a pedra pontuda ficava encarando a outra pedra, lá no canto do muro - aquela sim, uma pedra enorme.
Por estar muito longe e ser pesada demais, sempre adiei a possibilidade de tê-la como acento. mas, suas formas planas, seu tamanho exato e toda sua robustez venceram. Peguei uma corda, amarrei em seu entorno e a arrastei para os pés da laranjeira-limoeiro, no lugar da pedra pontuda que já havia sido retirada. Algum mato foi arrancado no arrastar, bem como um pouco de terra ficou revirado. Fiz um pequeno buraco para deixá-la nivelada. Estava feito.
Sobre a pedra de faces quase lisas vivenciei muitas coisas, viajei para diversos lugares, entoei uma infinidade de mantras, comecei e finalizei a leitura de livros. Sempre nas primeiras horas da manhã, numa atividade que passou a ser uma rotina. Com os problemas, a prática foi sendo interrompida, mas a pedra continua lá, sob a folhas daquela bela arvorezinha. Eu também estou ali, impregnado em cada poro de seu calcário.