Céu Noturno
Maria Celeste saiu do consultório médico agarrada ao marido. O vento varria a sujeira da rua e obrigava os transeuntes a se curvarem e semicerrarem os olhos. No céu, cinzentas nuvens gordas ameaçavam um aguaceiro.
— Vem, Rubens, vamos tentar chegar em casa antes da chuva.
Abriu a porta do carro para o marido e o instalou no banco do carona. Ao sentar-se ao volante não conseguiu conter as lágrimas. O doutor Humberto atestou o agravamento do Alzheimer do marido e enfatizou os tempos difíceis que viriam. Vivia com Rubens há 45 anos, um homem vigoroso, gentil, que dificilmente tinha o ego inflamado; mas a vida lhe roubara tudo isso, tornando-o agora apenas uma casca do que foi.
Acariciou lhe o rosto e o beijou.
Ia dar partida no carro quando viu um homem maltrapilho parar na porta da padaria ao lado. Disse ele qualquer coisa para alguém lá dentro e saiu de cabeça baixa. Maria Celeste saiu do carro.
— Moço, posso te pagar um pastel?
O homem a olhou com surpresa e um sorriso nasceu em meio a farta barba. Assentiu com a cabeça. Ela lhe comprou dois pastéis de carne e o entregou. Sentiu o fedor emanar dele, mas não afastou a mão quando ele quis apertar-lhe a sua. Ele a olhou com gratidão e disse algo incompreensível.
Havia algo nele que a encantava e entristecia. Seria seus olhos cor de mel que irradiavam doçura ou seus gestos incauculados, que lhe lembrava os de um recém nascido? Parecia tão indefeso! Fitou-o por tempo suficiente para dizer:
— Gostaria de ir para minha casa? Pode tomar banho e comer um jantar decente.
Ele a olhou com surpresa. Outro sorriso surgiu no rosto castigado.
— Gratidão, santa senhora. Não se preocupa eu vou visitar chovendo até o... Não preocupa.
Agradeceu-lhe mais uma vez com um gesto de cabeça e virou-se. Maria Celeste não entendeu nada do que ele falou; com pesar observou-o se afastar com lentidão. Gordas gotas de chuva começaram a cair.
— Vamos. Deixa eu cuidar de você.
O estranho se virou e a contemplou. Uma mistura de sentimentos reluziu em seus olhos: surpresa, alívio, medo e raiva. Abriu a porta do carro para ele que sentou-se no banco de trás no momento em que a chuva desabou de vez.
Maria Celeste queria fazê-lo falar, mas o estranho limitava-se a dar respostas curtas, ás vezes sem sentido algum; mostrava mais interesse na paisagem do que nela. Ela começou a tagarelar, falando de coisas banais, para deixá-lo à vontade. Foi ao parar de frente a sua casa que ela se lembrou de perguntar o nome dele.
— Cassimiro Leopoldo dos Anjos — Foi a resposta. Ele olhava o quintal verde enquanto descia do carro.
Ele a ajudou a conduzir Rubens para dentro de casa.
Lá fora a chuva rugia.
— Meus filhos chegam logo — comentou Maria Celeste enquanto ajeitava o marido confortavelmente no sofá da sala. — Eles trabalham juntos.
Cassimiro ficou parado olhando para os pés. Ouviu a senhora se aproximar.
— Vem comigo. Vou te mostrar o banheiro. Tem tudo o que você precisa lá. Inclusive máquina de barbear.
Ela segurou-o pelo braço, dada a insegurança que ele demonstrava. Seguiram por um corredor largo.
— Este é quarto do meu filho mais moço, Carlinhos. Ele gosta de tecnologia, passa horas mexendo no computador quando está de folga. Este outro é o do meu filho mais velho, Marco, ele tem muito ciúme das coisas dele e sempre tranca a porta quando sai. Aqui era o quarto da minha filha, Isis, que Deus á tenha, morreu há dois anos de câncer, você pode dormir nele. E aqui é o ninho meu e do Rubens. Dá pra ver o quanto somos católicos, né? Gosto muito de imagens de santos. Ali é a sala de descanso, o banheiro e ao fundo fica a cozinha.
Ouviram vozes vindas da frente da casa.
— Meus filhos. Pode ir tomando banho. Tem toalha limpa atrás da porta. Vou avisar os meninos que você tá aqui.
Ela notou que ele olhava a cozinha.
— Ainda tá com fome? Vamos pra cozinha primeiro.
Montou um prato de pães de queijo e broinhas de fubá. Encheu-lhe uma xícara de café fumegante.
— Coma a vontade. Se quiser mais, pode pegar no forno do fogão. Assei essas quitandas hoje de manhã. Ainda estão tão fresquinhas!
Ela saiu sorrindo. Cassimiro voltou-se para o prato e enfiou duas broinhas na boca. Nunca tinha comido algo tão saboroso, era macia, com gostinho sutil de cebolinha. As vozes da família soavam altas lá na sala, mas ele estava alheio a isso, olhava a chuva escorrer pelo vidro da janela e se deleitava com o aroma do café. Quando deu por si, viu a boa senhora adentrar a cozinha atrás de dois homens enormes.
— Vai embora — rosnou o que deveria ser o mais moço pois tinha menos cabelos brancos nas têmporas.
Os dois o agarraram, arrancando-o da cadeira. Maria Celeste interveio.
— Deixa ele. Eu que convidei ele pra minha casa, comer da minha comida e descansar sob o meu teto.
— Mãe — começou o mais velho,— a senhora perdeu o juízo? Trazer um sem teto pra casa sem nem conhecer? Olha a imundice dele. E não pensou nos riscos? A senhora e o pai podiam estar mortos agora...
— Quem perdeu o juízo foi você, pensa que pode falar assim com sua mãe? Isso se chama caridade, fazer o bem sem olhar a quem.
Cassimiro os observava um tanto apreensivo.
— Caridade? Não bastou vender o carro do pai e dar todo o dinheiro pra igreja por pisos? E comprar roupas todo mês pra dar pra desconhecidos? E o dinheiro que manda pro hospital de Barretos há mais de vinte anos? Tá querendo virar a Madre Tereza, mãe?
O estalo do tapa que ela desferiu no rosto do filho mais velho encheu a cozinha.
— Não fala nesse tom com sua mãe, Marco.
— Ou a senhora manda isso embora agora ou eu vou.
Ela segurou o rosto do filho com as duas mãos e em tom suplicante, disse-lhe:
— Larga de orgulho, Marco! Temos mais do que precisamos, e que mal tem em dividir com quem não tem nada?
— Deixa eu e o Carlinhos levar ele pra fora, mãe.
— Só essa noite, filho. Pra ele descansar.
— Descansar de quê? É um vagabundo. — Ele se virou para o irmão — Vou sair, fica de olho nele.
Marco fitou Cassimiro com profundo ódio. Saiu da cozinha com a mãe em seu encalço.
Carlinhos aproximou-se do estranho como uma ameaça.
— Minha mãe é uma santa, não vê maldade nas pessoas, mas tem dois filhos que protege ela, protege meu pai e a nossa casa. Se tentar alguma coisa...
Ele se afastou com nojo, não aguentando o fedor que ardia do vadio.
Lá fora a chuva caía torrencial. Raios e trovões conquistavam o céu.
Minutos depois, Maria Celeste voltou para a cozinha, murmurava uma oração, lançou um olhar ferido para o filho quieto.
— Errei o sal na broinha, achei que ficou bastante salgada...— disse animando-se, tentando dissipar o desconforto que seus filhos causaram.
— Muito gostosa. — respondeu Cassimiro que se levantava da mesa.
Sua anfitriã disse-lhe:
— Agora pode tomar banho. Lembra onde é?
Ele assentiu.
— Vô embora. Quero causá problema não. Inda outra veiz minha asfalto quente...
— Toma um banho, durma aqui. Prometo não segurar você amanhã, se quiser ficar ou ir embora, é com você. E ah, coloquei uma muda de roupa no banheiro, é sua.
O andarilho passou por ela agradecendo, sendo vigiado por Carlinhos.
— A senhora não pensa na nossa segurança, né mãe?
— Fica tranquilo, meu filho, sinto que ele é bom, senão não traria ele aqui. — Ela começou a lavar o copo e prato que Cassimiro usou.
— Mas por quê isso agora?
— Se eu pudesse, faria mais, por muitos mais. Já pensou se você estivesse no lugar dele?
Carlinhos deixou-a sozinha, era perda de tempo discutir com ela.
Uma hora depois um outro homem saiu do banho, essa foi a impressão que Maria Celeste teve. Cassimiro vestia uma bermuda com estampas e uma camiseta cavada que deixava a mostra seus braços finos curtidos pelo sol. O cabelo emaranhado tinha sumido e dado lugar a um corte amador bem curto. A barba também se foi, revelando uma boca fina e destacando os olhos grandes. Maria Celeste sorriu para ele.
Jantaram. Carlinhos ficou mudo, sempre de olho no estranho. Rubens não parava de perguntar quem era Carlinhos e Maria Celeste tentava desviar a atenção do marido com conversas casuais. Quando comiam a sobremesa, Rubens ficou mais agitado, xingando Carlinhos por não reconhecê-lo.
— Eles sempre piora a noite — disse Maria Celeste mais para si.
Cassimiro ficou com sua anfitriã enquanto esta lavava a louça. Carlinhos levou o pai para o quarto; o velho começava a cismar que tinha que sair para trabalhar naquele momento.
— E então, Cassimiro, de onde vem?
Com sua voz baixa e frases um tanto confusas, se abriu para a anfitriã, mas ela entendeu pouca coisa, que resumiu para si da seguinte forma: ele andava sem rumo há muito tempo. Numa noite, sua casa fora assaltada e seus irmãos mortos. Sua mãe, desconsolada morreu pouco depois. Sozinho e ainda um moleque, saiu de casa e nunca mais retornou. Maria Celeste não se atentou muito a esses fatos, não queria que ele entrasse em profunda tristeza revivendo o amargo passado. Apressou-se a mudar de assunto.
— Andar. — disse ele depois que ela o perguntou o que gostava de fazer.
— Não acha que está na hora de parar de andar e viver uma vida de verdade? Posso ajudar você com um emprego, tenho bons amigos que te empregariam se eu pedir. Eu e meu marido temos outras casas, você pode morar numa delas até conseguir se estabilizar.
Ele não respondeu, por isso ela virou-se para ele e o que viu a fez arregalar os olhos e contornar a mesa apressada dizendo não, não não.
— Não precisa chorar, Cassimiro. Deixa a tristeza lá fora. Pode tratar de ficar feliz porque a partir de hoje você começa a mudar de vida.
Ele soluçava tão forte que chegava a sacudir a mesa. Ela acalentou-o dando-lhe tapinhas nas costas.
Como poderia explicar o que sentia? Viveu tantos anos mendigando um pedaço de pão, disputando comida do lixo com cachorros, não se lembrava da última vez que alguém o viu como um homem. Agora aquela mulher que surgiu do nada, quando estava indo embora daquela cidade, cuidava dele como se fosse seu filho a muito perdido. Jamais esperou mais que migalhas e eis que a boa senhora lhe oferecia a chance de ter uma vida e tornar-se um cidadão.
Maria Celeste o conduziu para o quarto que fora de sua filha.
— Amanhã cedo vamos falar do seu futuro. Descasa e fica tranquilo. Boa noite.
O sorriso que ele lhe deu foi o mais completo até então.
Enquanto ajudava o marido a se deitar, Maria Celeste foi assaltada pela lembrança do passado, quando era apenas uma mocinha recém casada. Naquela época, ela e Rubens só possuíam o dia para trabalhar e a noite para repousarem num quartinho que a amiga de sua mãe cedera. Foram tempos tão difíceis, pensou, pouco dinheiro e muitos sonhos pela frente. A gravidez os pegaram de surpresa, recém casados, como poderiam criar um bebê que lhes tomariam o tempo e dinheiro que não tinham? Ambos decidiram que o aborto seria a melhor opção para os três.
Cobriu o marido com um lençol, os olhos tão distantes, estariam perdidos também no passado? Ela se deitou ao lado dele e o abraçou. Deus certamente o perdoara, era homem e pensou no bem estar deles dois, mas ela, tendo o dom de ser mãe, matar um filho ainda na barriga era uma afronta contra seu próprio dom divino, não merecia perdão algum. Todas as noites dos últimos 45 anos, antes de dormir, pensava em como seria o rosto daquele anjo. Quanta dor sentia e a quanto tempo! Era como viver flutuando sozinha num céu noturno, onde a luz das estrelas distantes era seu único consolo, pois sua ânsia pela aurora parecia afastá-la constantemente. 'Nunca poderei remediar meu maior pecado'.
A noite resplandecia lá fora. O temporal passou, deixando um céu de lua cheia salpicado de estrelas. As estrelas, filhas da lua, era o que a mãe de Maria Celeste costumava dizer-lhe quando era pequena.
Sim, as filhas da lua, junto com a mãe, lançavam sua luminescência pela janela entreaberta do quarto de Carlinhos e iluminava um quadro com uma foto de família. Ele próprio, ao lado, dormia um sono inquieto.
A luz do céu noturno também se fazia ver através do vidro da janela de outro quarto. Cassimiro sonhava, como nunca se lembraria ter sonhado antes, a luz noturna caía sobre seu rosto relaxado, onde um sorriso insistia em permanecer.
Na sala, Marco trancava a porta e adentrava a casa pensando em não fazer ruído. Sua mente era como um caleidoscópio que girava em meio a tantos pensamentos, instintos e emoções. Por isso errou seu quarto, adentrou um outro onde as paredes eram rosa, o quarto que fora da sua irmã. Ainda abrigava fotos dela, sorridente, nas paredes e no criado mudo, mas o rosto ao luar ali na cama não era o dela. Passou as mãos no rosto, os olhos muito espertos dançando, a respiração acelerada e a raiva eletrificando seu corpo e o fazendo tremer. Pulou na cama, agarrou o pescoço fino e o apertou. Os olhos de Cassimiro se abriram, surpresos, temerosos, tentavam focar-se no rosto tomado pelas sombras, tão próximo do seu.
Por quê tanta dor agora? Os pulmões socavam o peito magro. As veias começavam a pulsar cada vez mais devagar. Baba caiu sobre a testa e pareceu queimá-la. A luz do quarto se acendeu no momento em que a dos olhos de Cassimiro se apagaram para sempre.
Marco virou-se. O pai, de pijama, com um braço estendido, avançava sobre ele, 'tão lúcido'! Derrubou o filho no chão com um golpe.
Maria Celeste apareceu na porta, as mãos cobrindo a boca. Viu o rosto arroxeado de Cassimiro, inerte e ainda com um fraco sorriso. Carlinhos a amparou para que não caísse.
Mas quem poderia ampará-la, tendo agora a culpa de mais uma morte?
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