Histórias que gosto de contar – A garota precoce
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 28 de fevereiro de 2023
Menina precoce, irmã mais nova de uma prole de 13 filhos, fora criada com muito carinho pelos pais. Os irmãos mais velhos já tinham deixado a casa paterna quando ela veio ao mundo. Sua mãe, beirando os 53 anos de idade, viúva, com vida dedicada exclusivamente aos filhos, não afeita a sair de casa, só em extrema necessidade, era bastante ciosa das mudanças que ocorriam ao seu redor, onde moças com comportamentos muito diferentes dos seus, levavam medo à velha senhora. A garota crescia a olhos vistos, tanto em estrutura corporal como em esperteza. Aos 12 anos já media 1m70cm. Pegava tudo no ar, curiosa em demasia, vivia a ler, muitas vezes às escondidas, tudo que lhe chegava às mãos, revista feminina, de ajuda, romance entre adolescentes e por aí vai. Estudiosa ao extremo. Esse comportamento levava os amigos a lhe chamarem de CDF (C. de ferro).
Moça feita, bonita, cabelos muito lisos, caindo abaixo dos ombros, mas sempre desalinhados, não gostava de penteá-los, ou tinha preguiça. Voz rouca, que encantava os que a ouviam falar. Andar faceiro, sabia que era bonita, mas não ligava para isso. E isso preocupava sua mãe, que pensava “será que nem a beleza dela vai fazê-la feliz?” Ela não tinha a resposta, o que a deixava mais preocupada. E novamente vinham aquelas dúvidas “ter uma criança na minha idade seria correto?” “Eu terei força e punho para educar essa menina?” Isso era o que mais a assustava.
Nesse devaneio a senhora viu sua filha passar ao lado e sair pela porta da frente. Era uma casa pequena e a saída era vista de qualquer cômodo, bastava olhar do início do pequeno corredor, ou mesmo da cozinha, onde se encontrava a mãe da garota, preparando o almoço daquele dia.
Dona Elmira já não se incomodava com essas saídas da filha, sempre voltava ao meio-dia, para almoçar. A cidade era pequena, nada acontecia para deixá-la assustada. Eliza, a filha, também nunca tivera comportamento que colocasse em perigo sua vida, a mãe pensava assim. Todos os dias saía, dizia, para espairecer!
Naquele dia não apareceu para almoçar, deixando em desespero sua mãe. Corre pra lá, corre pra cá, pergunta aqui, pergunta ali e nada da menina, da minha filhinha, como Dona Elmira sempre tratava Eliza. Ninguém dava notícias. A cada minuto, o desespero aumentava. Alguém veio informar que vira uma moça igualzinha à descrita pela mulher, entrando em uma casa abandonada na saída da cidade. Muita gente correu para lá, encontrando a menina deitada em um monte de panos velhos, parecia em sono profundo. Assustada, acordou, tentou correr, mas a mãe conseguiu segurá-la. Vendo-se impotente, a merina relaxou, entregando-se aos braços de sua idosa mãe. O desespero agora era da filha, que não sabia explicar aquela situação.
Levada para um posto médico, a enfermeira que a atendeu, assustada, percebeu várias mutilações no corpo da garota. Sem informação, a profissional pediu para chamarem um médico. A menina continuava de boca fechada, não falava nada, apenas olhava para um lado e para outro, como não entendendo nada do que ali se passava. Não tardou o médico. Para a sorte da garota, era um psiquiatra, que trabalhava em um hospital da cidade vizinha.
Durante a consulta, apenas entre o profissional e a paciente, ficou claro que se tratava de um comportamento cutting, que está relacionado ao sofrimento, possivelmente, de relacionamento conflituoso, como traumas familiares, angústia, transtornos de ansiedade, psicoses, frustrações, bullying etc.
O médico explicou que esse comportamento ainda não é bem compreendido, mas é um sinal de pedido de socorro, aviso de que algo está acontecendo. A prática de mutilação, o cutting – cortando a si mesmo - acontece quando o jovem quer deslocar o sofrimento psíquico para a dor corporal, mais suportável fazendo o indivíduo perder a identidade, aumentando, assim, os conflitos internos, gerando a continuidade do comportamento.
Após essas explicações, o psiquiatra aconselhou Dona Elmira, a procurar assistência de uma psicóloga, no hospital ou clínica mais próxima, para debelar a crise atual e colocá-la em um programa de acompanhamento contínuo, até que a garota se estabilizasse. Para isso, ela deveria ser incluída em um projeto terapêutico, que tem papel fundamental no cuidado para esses casos.
De volta para casa, Eliza ainda se encontrava confusa. Não se lembrava de muita coisa, mas estava satisfeita de ter aberto um canal de comunicação com a mãe, que, ignorante de quase tudo, nunca percebera que a filha tinha conflitos internos e que sozinha não conseguiria resolver.