Ser “homem”!

27.02.23

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Meu pai fazia a barba todos os dias pela manhã logo após o banho e eu assistia algumas vezes quando menino. Era um ritual e acompanhava atentamente cada movimento dele.

Ele se postava em frente ao espelho do banheiro, usando um roupão branco, eu sentado no banquinho de roupa suja ao seu lado, daqueles em que o assento levanta para jogá-las dentro para lavar, olhando-o curiosamente no manejo dos apetrechos colocados sobre a pia.

Ficava entretido como, com o uso do pincel e do creme de barbear, deixava todo o seu rosto branco como neve, igual ao do Papai Noel.

Depois, com o aparelho de barbear metálico de lâmina, ou “Gilette” como era chamado corriqueiramente naquele tempo, ia deslizando-o suavemente pelo rosto, fazendo sulcos e desfazendo a barba branca de Noel, ressurgindo assim sua fisionomia que eu conhecia muito bem. Deliciava-me vê-lo compenetrado em sua atividade. Às vezes, ele me olhava pelo espelho e dava uma piscadela com seus olhos verdes escuros calmos e bondosos. Eu lhe sorria.

O creme de barbear era “Bozzano”, com seu cheiro de mentol inesquecível- lembro-me até hoje. A barba branca ia sendo apagada até que pequenos retalhos resultavam e gradativamente eram eliminados com a lâmina de barbear e a toalha. Seu rosto aparecia lustroso e liso. Ele passava suavemente a mão por ele para ver como foi o resultado, dando um leve sorriso para si no espelho e dizia: “liso como bundinha de nenê”. Riamos da brincadeira.

Um dia, fui ao seu banheiro e resolvi fazer a minha barba! Claro que o meu rosto de menino, nos meus onze anos de idade, apresentava somente penugens finas, nada de pontos escuros ou pelos duros de uma barba por vir. Mas, num ímpeto de querer me tornar “homem”, resolvi fazer o mesmo ritual dele - barbear-me!

Não era alto ainda e o meu peito batia na pia e o espelho só mostrava meus cabelos e olhos. Tive que puxar o banquinho, para que, subindo nele pudesse me ver totalmente refletido. Sorri para aquele menino que queria ser “homem”.

Iniciei o ritual. Abri o armário do banheiro sobre a pia e retirei o seu estojo em couro com o aparelho e creme de barbear, o pincel e um vidro de água de colônia. Todas as peças eram prateadas e ganhou esse jogo de presente da minha mãe no seu último aniversário. Olhava-as maravilhado, pois eram coisas de “homem” e teria um igual quando mais velho.

Liguei a água deixando-a escorrer até esquentar, ou pelar. Peguei o creme de barbear e apliquei pequenos pontos nas faces. Embebi o pincel na água fumegante e comecei a fazer espuma com ele, com leves giros das cerdas sobre o creme. A espuma começou a crescer e fiquei também igual ao velhinho bondoso do Natal, e como o meu pai, de barba branca.

Então, puxei do estojo o aparelho de barbear com o seu prateado reluzente e comecei a passá-lo pelas faces em movimentos lentos. Não escutava o barulho da lâmina cortando os pelos, como ouvia com meu pai fazendo. Fui limpando o creme com a “Gilette” e sentindo um ardor forte por causa do frescor do creme.

Limpei os restos brancos com a toalha e a pele do rosto ardia fortemente - estava bem vermelho. Ao final, peguei o frasco de vidro de água de colônia com tampa metálica, coloquei um pouco nas mãos e passei na face e no pescoço, igual ao meu pai. A queimação aumentou, ficando as faces ainda mais rubras, como um pimentão.

Olhando-me ao espelho e passando suavemente as mãos pelo rosto ardendo como brasa, disse: “liso como bundinha de nenê”. Tentar ser “homem” antes do tempo tinha o seu preço.

Veio-me hoje essa lembrança ao me olhar ao espelho com meus setenta anos de vida e muitas barbas feitas, pois iria iniciar mais uma, com saudades daqueles tempos de menino, mas sem mais precisar ser “homem”. Uma pena!

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 27/02/2023
Reeditado em 12/06/2023
Código do texto: T7729053
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