No Sofá!

25.02.23

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Resolvi fazer uma viagem de moto no carnaval. Iria ver a minha sobrinha, e afilhada, que descobriu um início de câncer na tireoide e operada com a retirada total desta glândula, motivo maior da minha ida a São Paulo. Ela se recuperava na casa da minha irmã na cidade de Holambra no interior do estado.

Também, ver minhas netas, meus filhos e minhas noras na capital, matar as saudades, pois ser avô é o melhor desta nossa “terceira” idade. Viajaria sozinho, fazer “mototerapia”, como digo.

Aproveitando a oportunidade, estenderia o trajeto para outras cidades do estado e voltaria pelo oeste do Paraná. A primeira parada seria em Araras, na qual moram amigo e cunhado da época em que tive uma Construtora – fizemos a loja de materiais de construção da família do meu amigo, apresentado a mim pelo cunhado. Depois, seguiria para São Carlos, passaria o sábado de Carnaval com colega da época da escola primária, com mais de 50 anos de amizade. Voltaria para “Floripa” de São Carlos até Ponta Grossa e dormiria domingo em hotel reservado. Segunda-feira de Carnaval tocaria para minha casa na ilha. Era o trajeto planejado.

Viajaria com a “La Poderosa”, apelido da motocicleta que tenho atualmente, em homenagem ao filme “Diário de Motociclista”. É poderosa mesmo, com a potência do seu motor de cento e setenta cavalos de força, que minha mulher diz, jocosamente, que tenho um haras no meio das pernas. A previsão do tempo não era animadora, a chuva seria constante nestes dias de folia, mas quem pilota moto não escolhe clima.

Saí cedinho de Florianópolis na sexta-feira de Carnaval, madrugada ainda, pelas cinco horas da manhã. E depois de sete horas cronometradas de viagem, entrava na garagem da casa do meu filho mais velho em São Paulo. Não choveu, e foi ótimo o trajeto e “La Poderosa” se comportou magnificamente bem, fazendo jus ao seu apelido.

Passei o fim de semana aproveitando muito minha neta mais nova, Martina, que está faceira e esperta. Completou onze meses no domingo e quase já andando. Uma “delícia” a sua companhia livre e solta. É muito bom ser avô.

Na segunda-feira fui ver minha afilhada na casa da minha irmã em Holambra. Ela evoluía bem da operação, com prognóstico de que o câncer fora totalmente extirpado, segundo o médico, mas confirmaria em consulta na semana seguinte. Voltei mais tranquilo.

Segui aproveitando a netinha, ficamos muito apegados- ela me via e se jogava em minha direção abrindo um enorme sorriso mostrando os seus dentinhos nascendo. Na quinta-feira, tive jantar com os filhos e noras para comemorar o aniversário da esposa do caçula, ótimo encontro também. Enfim, matei as saudades de todos nesses dias que fiquei na capital paulista. Pena que não pude ver a neta mais velha, que está uma graça também, já falando quase tudo. Ficou para a próxima ida.

Sexta-feira pela manhã iniciei a volta planejada. Saí da casa do meu filho não muito cedo e fui para Araras visitar os amigos, que não os via desde a pandemia. Lá, fomos à casa do cunhado e conversamos bastante.

Depois, quis matar as saudades de um local na cidade que frequentei muito com o meu pai nos meus dez anos de idade, um restaurante em que se almoçava um arroz com feijão delicioso, costela de vaca, batata e ovos fritos. Ou seja, faz sessenta anos e ainda existe o tradicional local, que tem cerca de oitenta anos de idade! Fomos almoçar lá eu e o amigo ararense, e ao terminar a deliciosa refeição caseira, lembrei-me da inesquecível sobremesa: queijadinha. Perguntei se tinham e me trouxeram uma. Saboreei-a como naqueles saudosos tempos de criança. Bons tempos!

Seguindo a viagem, fui para São Carlos chegando ao meio da tarde de sexta-feira no belo condomínio em que mora o colega de escola e que há alguns anos não nos víamos. Residem em uma ampla e bela casa, aconchegante e agradável, e passamos a sexta-feira e o sábado colocando a conversa em dia, relembrando nossa época de escola, dando ótimas risadas. Meu amigo e sua mulher me receberam e me trataram como um rei. Na noite do sábado a chuva começou fina e constante – domingo seguiria para o Paraná e seria um dia de garoa “criadeira”, ininterrupta pensei. Como disse antes, motoqueiros não escolhem tempo e não têm medo de chuva.

Acordei as quatro e trinta do domingo e abri a janela para ver como estava a madrugada que findava e como o dia amanhecia: garoava. Vesti-me, meu amigo acordou comigo e tomamos o café da manhã. Despedimo-nos. Saí para o trecho até Ponta Grossa, cerca de quinhentos e cinquenta quilômetros de distância, com chuva lenta e densa.

Depois de uma hora estava em Jaú, há cem quilômetros de São Carlos, e achei que a direção em que seguia era errada. Parei debaixo de um viaduto, e ao frear a moto, a manete de freio amoleceu e ficou sem pressão. Estranhei. Ao soltá-la, um barulho de metal caindo no chão se fez! O que será agora? – falei comigo surdamente. Olhei para a roda dianteira, e do seu lado direito, um pedaço de aço estava no asfalto – era a pastilha do freio dianteiro. Desci da moto e peguei-a na mão. O que fazer agora?

Duas alternativas eram possíveis:

-a primeira, voltar para a casa do amigo em São Carlos e arrumar o freio no dia seguinte, talvez a mais sensata;

-a segunda, seguir viagem assim mesmo, pois teria que controlar as frenagens com o freio traseiro, evitando ao máximo forçar o dianteiro - a de maior risco!

A moto tem sistema de freios ABS, para que não travem as rodas em freadas fortes, mas o risco que isso acontecesse em uma situação de emergência seria grande, se seguisse a viagem. E a chuva se mantinha incessante.

Liguei para o amigo em São Carlos, relatei o problema e perguntei se conhecia algum mecânico que pudesse no dia seguinte fazer a troca das pastilhas. Respondeu que não, mas que iria ver e me retornaria.

Logo a frente do local em que parei, havia um viaduto distante cerca de um quilômetro e teria que retornar por ele para voltar para a casa do amigo.

-Vou ver como ela se comporta até lá e decido!

Liguei a “La Poderosa”, ela roncou e o painel não mostrou nenhuma luz de advertência. Engatei a 1ª marcha e saí pela estrada devagar testando o freio dianteiro, que se manteve normal, com pressão, a menos do barulho de ferro com ferro do contato entre o disco e a pinça da pastilha.

-Vou tocar assim mesmo! – decidi! Meu espírito rebelde preponderou.

A viagem foi com garoa batendo incansavelmente até a divisa com o Paraná, quando deu uma trégua. Esse trecho foi cansativo, estradas vicinais com muitas curvas e serras, desconhecida para mim, mas com uma bela paisagem que pouco aproveitei, pois precisava manter a atenção e o foco para não sobrecarregar os freios. Foi bem tensa esta etapa, de cerca de trezentos quilômetros até a cidade de Wenceslau Braz.

A partir deste trecho, a chuva parou e pude andar com um pouco mais de velocidade, a pista secou, e aproveitar a paisagem de campos de soja a perder de vista, como tapetes verdes-claros até o horizonte. Estava no planalto, com certa altitude, e agora era o vento que batia em fortes lufadas ocasionais, fazendo com que a moto, em certos momentos, fosse empurrada para fora da pista.

Cheguei ao hotel em Ponta Grossa às 14 horas. Estava exausto, mas feliz por ter conseguido levar a “La Poderosa” até lá são e salvos. Foi uma façanha e tanto. No dia seguinte iria tentar resolver o problema, pois o trecho até “Floripa” era bem mais pesado em termos de tráfego, curvas e exigiria muito mais dos freios.

Depois de um banho prolongado, falei com o meu amigo são-carlense, pois até então não tinha dado retorno a ele desde Jaú. Conversei também longamente com a minha mulher, contei o acontecido e a tranquilizei de que seguira viagem com os freios consertados.

No dia seguinte, após o café da manhã, acessei pela internet a listagem de mecânicos de motos de alta cilindrada na cidade. Liguei para três deles e somente um me atendeu. Seu nome, Luís Fernando. Relatei o problema e me respondeu:

-Tudo bem, tranquilo, eu vou até o seu hotel e faço a troca aí mesmo, pois hoje estou com a oficina fechada. Era segunda-feira de Carnaval.

Curiosamente, sua oficina chama-se : “By Louis” , ou pelo Luiz!

Luiz chegou com uma caminhonete, entrou na garagem do hotel e desceu sorridente. Era alto e forte, barbicha aparada e usava óculos de grau; simpático. Tirou duas maletas, colocou luvas e começou a avaliar o estrago, já desmontado a pinça de freio da qual caiu a pastilha.

-Correu um risco grande em amigo, podia ter travado a roda dianteira e acontecido um acidente, ainda mais com a chuva que caiu!

-Pois é! Mas o que vale é a emoção e o desafio, não é mesmo? Ainda mais com quase setenta anos nas costas! – respondi-lhe rindo.

-Nada, está jovem ainda. Você sabe qual é o pior lugar para a gente ficar nesta idade?

-Não?

-No sofá! Aí que você morre logo. Rimos bastante da sua observação.

Troquei todas as pastilhas da “La Poderosa” com o “Louis”. Ele passou o escâner na moto pelo computador, fazendo todos os ajustes e correções necessários para que ela não tivesse qualquer problema. Acabou-se o tempo de se ajustar e sangrar o freio, hoje é tudo através da tecnologia.

Às 11 horas saí de Ponta Grossa e cheguei a minha casa às 18 horas. No total, rodei cerca de dois mil quilômetros e apesar de todos os problemas, foi ótima a viagem e “La Poderosa” continua sendo poderosa. E não fiquei no sofá, tomei banho e fui direto para a cama!

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 25/02/2023
Código do texto: T7727371
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