FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS
Tem certas coisas que só acontecem com quem é destemido.
Amigo meu de longas datas contou que, nos anos oitenta do século e milênio passados ele com o intuito de disseminar os conhecimentos adquiridos na profissão, resolveu criar um programa de capacitação para os iniciantes na arte de vender, com treinamento intensivo em cinco aulas, na modalidade que hoje em dia se chama imersão.
Naquela época Alta Floresta nem aparecia no mapa do Brasil, por muito favor a marcação geográfica da localidade podia ser comparada ao cocô de mosca.
Hoje é outro papo. A cidade cresceu, tornou-se rica e próspera como o seu povo que sempre foi bom e hospitaleiro. Entre esses havia um amigo desse meu amigo (sem ser o “amigo do amigo do meu pai” das planilhas da corrupção) que resolveu abrir uma rede de lojas, dessas que vendem tudo, de sapólio a coroa de flores para defunto e, como a mão de obra disponível era de adolescentes que foram forçados a acompanhar os pais para a nova região agrícola, ele pediu ao meu amigo que fosse até lá para dar o curso que transformaria aquele bando de capiau em verdadeiras máquinas de vendas.
Negócio acertado, meu amigo teria que passar a semana por lá e ir de avião por ser a alternativa viável, naquele tempo em que as estradas não passavam de picadas esburacadas com tempo de viagem nunca menor que duas semanas.
Era um desafio a mais para quem tem mais medo de avião do que de assombração em casa velha.
Ele esclarece, o problema é que avião para qualquer canto que vá, leva um buraco do tamanho de um trem bem debaixo dele e o diacho da oficina de reparo fica o tempo todo no chão.
Mas compromisso assumido tem que ser cumprido e o desafio de preparar os jovens foi maior do que qualquer cagaço.
De passagem em punho, lá se foi meu amigo para o aeroporto. Despachou a pesada maleta contendo o material do curso e ficou aguardando a chamada.
O voo tinha conexão em Brasília, porque para Alta Floresta só podiam ir aviões pequenos e leves que são capazes de pousar em pista de saibro e o aeroporto de lá era improvisado num desses silos de lona com armação de alumínio separado da pista por cerca de madeira. Coisa para aventureiro destemido do tipo Indiana Jones.
Já passava de uma da tarde e o voo que estava marcado para as dez horas da manhã ainda estava com o aviso “aeronave em manutenção”.
Ressabiado por conta deste aviso, meu amigo foi até o balcão da companhia saber o porquê desse atraso.
Com aquele sorriso de manequim de loja, a pessoa encarregada disse que o motivo era a substituição do para-brisa que fora danificado por granizo. Nada que pusesse em risco a segurança da aeronave, mas seguindo o protocolo, tal substituição teria que ser feita antes que o avião levantasse voo novamente.
Acontece que esse atraso poderia prejudicar a conexão para Alta Floresta que acontecia só uma vez por semana e tinha que ser feito durante o dia porque o aeroporto de lá não dispunha de iluminação de pista nem controlador de voo.
Feito o embarque, meu amigo pediu a aeromoça para falar com o comandante, para saber se chegariam em tempo hábil para a conexão. Depois da conversa entre o navegador e o aeroporto, ficou esclarecido que não haveria nenhum problema, que chegariam a Brasília com tempo bastante para a troca de aeronave, etc. etc.
Quando o avião pousou, se tivesse dado uma carreira o meu amigo teria embarcado, mas postou-se ao lado da esteira para pegar a maleta contendo todo material do curso.
Haja esteira rodando, mala de todo mundo sendo entregue e nada da dele.
Procurou alguém da companhia para dar conta do paradeiro da maleta e nesse meio tempo, o aviãozinho foi-se embora deixando ele lá a ver navios.
Quando finalmente apareceu um funcionário ficou esclarecido que o volume com etiqueta de destino em Alta Floresta, mudou de aeronave sem nem entrar no aeroporto de Brasília.
Mas a sorte não foi de todo madrasta, pois a previsão de que ficaria por uma semana em Brasília sem ter o que fazer, foi contornado por um voo extra, dois dias depois, devido ao grande número de passageiros que se destinavam à cidade que estava em acelerado crescimento.
As lojas foram inauguradas e até hoje os ecos da capacitação surtem efeitos positivos naqueles jovens que se tornaram profissionais de vendas apreciados por todos e o meu amigo ainda sente os cabelos dos braços arrepiados todas as vezes que fala no pavor que sentiu durante o pouso da aeronave na pista de saibro lavado pela tempestade que, exatamente naquele momento, encharcava as terras ao norte do Mato Grosso.
Depois desse episódio, o meu amigo aprendeu o significado daquelas abreviaturas que existem em comprovantes de volumes despachados...
GLOSSÁRIO
Cagaço = medo