Nasci no tempo errado

Nasci no tempo errado.

Não é possível que seja deste tempo. Nasci deslocado de meu ritmo de vivências, de sentir o mundo e de degustar pausadamente cada molécula que toca minhas papilas gustativas. Nasci sabendo que tinha nascido num tempo errado, mesmo sem ter experimentado o tempo que me aguardava. Nasci sentindo que o que haveria de sentir não caberia neste mundo, neste tempo, neste compasso. Nasci com excesso de ritornelos, cada um deles cravado na pele que encobre as entranhas. Nasci num tempo que não é meu e, desde o nascimento, venho tentando me adaptar a esse contexto no qual não me encaixo. Um mundo completamente sem textos e no qual tento, a todo custo, compor com-textos.

Camaleando-me, metamoforseando-me, vestindo-me com peças de roupas e com peles e com unhas e com retinas e com pelos e com cabelos e com mãos e com pés e com dedos e com línguas e com narizes e com sexos e com olhos de outros que sinto que sentem parecido com o que sinto. Vou passando, atravessando, carregando nas conchas de minhas costas pedaços do que encontro, retalhos, rabiscos, rascunhos, cascalhos – tal como um caramujo catador, acumulo detalhes deixado por outros. Não torna pesado o fardo em minhas costas, pois é o contrário: sinto alívio a cada coleta, pois os buracos do que sou tornam-se calorosamente preenchidos – o mosaico vai sendo feito, desfazendo o que querem e tornando o que me torna aquilo que vou sendo.

Mostrar-me seria difícil, já que o tempo que me é dado não permite que saia por completo de meu canto recluso. Seria medo? Seria aflição? Seria uma vontade extrema que cercearia a própria vontade de mostrar-me? Se o tempo fosse meu, teria nascido no tempo certo e mostrar-me por completo não seria uma opção, já que estaria todo transparente e nu, sem peles, sem pelos, sem ossos: somente nervos a pulsar e sangue a correr em veias translúcidas e cristalinas, nada cristalizadas.

No entanto, nasci no tempo errado.

Isso, de ser transparente e sem vestimentas, na verdade, já ocorre, mas quem consegue enxergar? Quem é capaz de sentir e ser afetado por minha total transparência e nudez sem sair correndo de medo ou de aflição ou de repulsa por algo totalmente desconhecido para uma grande maioria? Seriam cada um dos outros espelhos que por tanto tempo tenho procurado, capazes de refletir cada detalhe de minhas entranhas, a

carregarem em suas conchas meus cascalhos e rabiscos, sem que seja um fardo maltrapilho e enfadonho?

Nasci no tempo errado.

Vejo ao redor: instantaneidade. O que seria isso? Mensagens enviadas e recebidas a todo o momento e o azul característico dos dois ângulos agudos a tornarem-se brilhantes? A angústia por esperar a leitura de uma mensagem que sequer deixa os dedos e já atingem as retinas de quem vê parece dominar as relações interpessoais. As pessoas veem as mensagens, mas, muitas vezes, acabam por não enxergá-las, pois a pressa não permite e a angústia em querer tomar posse do azul torna-se primordial, passando a frente da íris, da retina e dos nervos oculares. Primeiro, o azul. Depois, todo o resto.

Os seres humanos passam por uma experiência curiosa: estão totalmente envoltos pelo crivo de um instante, pela permanência em atos discretos, descritivos e paralisantes, compassados e diagramados por letras digitadas, comercializadas e consumidas. Letras que mapeiam instantaneidades que já foram, sempre indo e tudo (nada) deixando. O que coletar, se nada (tudo) é deixado para trás? Como alimentar o casco sedento que pede, incansavelmente, por restos e detritos e resíduos?

As letras ficam todas ali. Permanecem. Apenas letras, numa tela brilhante. Rola-se, às vezes, para obter esta ou aquela informação, mas, na maioria dos casos, ficam inertes – e não importa, pois já foram recebidas e, nestes casos, o coração já se acalmou. Se foram percebidas, não se sabe. Que venham os outros ângulos azuis, cinzas, duplos ou simples para dar conta da espera. Se soubessem como recebo cada palavra escrita, como tatuo em minha pele cada curva tipificada, cada sílaba. Se conhecessem a forma pela qual degusto as orações (in)subordinadas, como adoro abraçar sujeitos, compartilhar adjetivos, vivenciar predicados e a mover-me junto a cada verbo.

Nasci num tempo errado.

Tenho sede de um tempo que não é meu, mas que deveria compartilhar comigo mesmo através das mais belas vivências – infelizmente, teimam em não enxergar e fingem não existir. Tenho sede de vagarosidade. Tenho tara por parar para olhar e vislumbrar – como gosto de olhar e ficar olhando. Minha alma recebe as coisas de fora

com os olhos, o colorido ao redor me encanta. Sinto o mundo pelas ranhuras de minhas retinas, pelo brilho que atinge e dilata, a todo instante, minhas pupilas. Meus olhos brilham e esse é o sinal de que a conexão foi estabelecida: sem cabos, sem redes invisíveis munidas com senhas e bloqueios. O brilho nos olhos conecta cada parte de meu corpo àquilo que estou vendo, e a única fibra óptica é aquela que une os globos oculares ao restante da maquinaria que sustenta o corpo. Eterno voyeur, observador nato que aprendeu a encontrar seu tempo olhando nas entrelinhas dos outros, nos vãos entreabertos daquilo que carregam as pessoas. Nos frisos de suas roupas que, volta e meia, deixam escapar partes que, a partir de suas regras e hábitos elaborados num tempo que não é meu, precisam ficar escondidas sob mantos característicos de suas vestimentas a cobrirem suas vergonhas.

Meu ser encanta-se a cada vez que meus olhos captam o sigiloso escapando por um zíper entreaberto ou por um decote que corre para baixo e para o lado, diagonalizando formatos e tons de pele característicos daquilo que fica encoberto por costumes. Sob minha pele, dentro de meus cascos, recebo e guardo e coleto, não como um colecionador que enquadra e deixa estático aquilo que vislumbra. Entro em sinergia com o que vejo, começo a sentir, a compor histórias de vida, de sensações, de percepções e de afecções. As sinapses fazem o corpo estremecer e consigo sentir aquela pessoa através de suas entrelinhas, de seus esconderijos, de suas rugas, de seus decotes e aberturas, de suas frestas – suas que, a partir da relação estabelecida, passam a ser totalmente nossas. Fica tudo ali, em minhas conchas, passando a fazer parte do que vou sendo.

Passo a habitar o que emana do outro e, a cada noite enluarada, rolo no chão abraçado a cada quinquilharia coletada. Se for pontiagudo, rasga logo a pele e entra de uma vez, emaranhando-se subitamente ao sangue das veias. Se for mais macio, deixo-me abraçar, aveludando-me com a sensação de ser envaginado por algo que, antes exterior a mim, passa a encapsular-me, deixando-me fazer parte do que é e fazendo parte do que sou e do que sinto e do que quero e do que desejo. Passa a fazer parte de meu tempo. Passa a ser meu tempo, totalmente desconexo de metrônomos, cronômetros e relógios de pulso, digitais ou de corda. Passa a temperar-me.

Nasci num tempo errado.

Coração de passarinho, que pulsa freneticamente – respiração ofegante, mas compassada, ritmada. Um ritmo que é só meu e que, para quase todos os outros, é puro caos e descompasso completo. A maioria não sabe ou não aprendeu ou não quer sentir e ouvir a própria respiração. Em meu caso, preciso disto, é puramente vital. Necessito ouvir meu corpo, mesmo que cada órgão esteja em vários lugares simultaneamente. Careço olhar para minha mente abaixo dos dedos dos pés ou sob a minha púbis ou entre os cotovelos, de fora para dentro e dentro para mais dentro ainda, sob os mais diversos ângulos e, integralmente, sem tentar entender, apenas vislumbrar toda a cartela de cores oferecidas, as nuances, os espectros luminosos que deixam as moléculas e repousam em minhas retinas. Apenas, olhar. Sentir o entre. Entreolhar.

Preciso de tempo, de meu tempo. Um tempo sem segundos, sem minutos, sem décimos nem milésimos. Um tempo sem escalas, pautado unicamente na velocidade dos acontecimentos – velocidades internas, sem essa de dividir distância percorrida pelo tempo do deslocamento. Velocidade, aqui, deixa os deltas para trás, é eterno infinitesimal. A soma das partes não formam meu todo, jamais. Não sou a integralidade dos cacos e pedaços e destroços que me habitam, mas também não sou menos do que eles. Sou o ínfimo e o supremo, a depender de minha vontade, de meu desejo, de minha intensidade. Sou corda a vibrar, sou dedo a arranhar, sou crina de cavalo a deslizar sobre o nylon do violino. Sou aborígene a rolar no barro debaixo de uma frondosa árvore, a sentir a terra entrando pelos buracos do corpo. Sinto o gosto e a textura e o cheiro e a temperatura do que me abraça e envolve. Tudo ao mesmo tempo.

Tempo? Nem sei se seria esse o nome. Acontecimento. Sem instantes, pois não há como repartir em pedaços tão pequenos quanto queiramos algo que flui. É tudo grudado, contínuo e continuado. Preciso de acontecimentos a pulsar para pulsar – propulsão. Minhas velocidades partem de zero e chegam aos cem a todo o momento, lá e cá. Momento? Sinta o vento! Velocidade constante a partir de pontos de inconstante dispersão. Não há estabelecimento de regras, demarcações, gráficos crescentes ou decrescentes, pontos de máximo ou de mínimo, nem locais muito menos globais. É tudo inflexão, mudando de direção e de sentido num piscar de olhos. Vou a todo lado, a várias velocidades. Esparramo-me. Sempre sentindo. Com nenhum sentido. Instantes longos-e-curtos. Sinto. Apenas sinto. Sintantes.

Eu nasci no tempo errado.

O que seria um instante? Para Zenão, o movimento sequer existiria, de modo que todos nós viveríamos em flashes de realidade – quadro após quadro, como infinitas fotos sendo tiradas a cada instante – neste caso, viver seria carregar uma polaroid dependurada no pescoço com o objetivo de capturar cada fração de segundo. Como fazer isso diante da continuidade de minhas idas e vindas?

Olhando com calma, talvez muitos seres humanos, hoje em dia, estejam vivendo segundo os preceitos do pai dos paradoxos temporais, fleshando suas vidas e enviando os pixels para todos aqueles que quiserem olhar e curtir sua vida enquadrada, limitada pelas lentes de suas câmeras, cada vez mais e em maior quantidade nas traseiras de suas célula(re)s. Pessoas aptas a capar até as entranhas de suas próprias sen(m)sações e expor em suas vitrines totalmente (im)pessoais e visitadas por todos os segui(dores). (Não) tenho (segui)dores. Sigo, com as sensações características de quem anda, pé ante pé, carregando todos os detalhes que encontra. As comiserações mais saborosas de se sentir, as quais nem mesmo o mais adepto ao sadomasoquismo poderia imaginar. Sigo. Apenas, sigo.

Eu nasci no tempo errado.

(Não com)sigo vendo os quadros, sequer minhas vistas alcançam o quadriculado dos pixels. Vejo tudo sombreado, em camadas, cores seguidas de outras, sem espaços – um entre total. Sou contínuo. Quero ver de perto, mais perto, muito perto – um close estonteantemente. Tão próximo que um pixel torna-se um vasto universo. O longe não me deixa entender, o instante é tão pouco para que eu possa sentir. Eu preciso de espaço, eu preciso de tempo, muito tempo, muitos tempos, muitas vidas, muitas sensações, muitos eus, muitos nós, muitos outros. Muitos. Vários. Outros. Nós.

Sou analógico. Eu preciso ouvir o tic-tac, eu preciso esperar a chegada da próxima carta, eu preciso sentir o cheiro da tinta na folha de celulose, eu necessito das palavras com cheiro, com cores e texturas, cheias de curvas, detalhes e sentimentos. Eu preciso ouvir o barulho das teclas sendo atingidas pelos meus dedos, ora delicadamente, ora com violência. Preciso datilografar sentado à máquina e com uma xícara de café ao lado, estremecendo a cada acento agudo pontuado. Eu preciso escutar o barulho das palavras atingindo a elasticidade das fibras do papel.

Eu preciso de espaço, sou espaçoso, sou volumoso, não caibo num quadro, numa selfie, num vídeo tic-toc. Necessito é do toque, de tocar e de ser tocado, como um violonista dedilha as cordas de seu violino, sente a escala lisa, desliza suavemente e com firmeza a ponta dos dedos da mão por toda a extensão do braço do instrumento de madeira, sentindo a textura macia dos nós, apertando e soltando as cordas e ouvindo e sentindo e sendo os próprios sons. Tornando-se os sons. Interiorizando os sons. Sensasons.

Sou som e instrumento e dedos e música. Sou peça musical inacabada, cheia de ritornelos – já disse isso, aqui vai mais um. Sou um com todos. Sou vários com outros. Sou outros. Sou eu.

Sou.

Apenas, sou.