Histórias que gosto de contar – A Devota
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 21 de fevereiro de 2023
Feirante desde pequena, trabalhava com a mãe vendendo frutas e verduras. A conheci já adulta, trajando vestes brancas, sempre limpa, saia comprida, turbante na cabeça, embora não fosse vendedora de acarajé, parecia uma, pela vestimenta usada. Alta, andando sempre de cabeça erguida, hoje, pela cor, seria alcunhada de Afrodescendente. Sorriso sempre aberto, atendia a todos com satisfação e fidalguia. Bela figura elegante que cativava a muitos e era invejada por outros, principalmente pelos companheiros feirantes, pois suas vendas superavam a dos seus colegas de trabalho.
Nunca procurei saber sobre a constância do seu trajar, mas desconfiava sua origem, promessa. Na casa de minha sogra era respeitada por todos, e era carinhosamente chamada de Comadre Helena. Era devota dos irmãos gêmeos, São Cosme e São Damião, que viveram entre os séculos III e IV, no Oriente, mais precisamente na Cilícia, antiga região na costa sul da Ásia Menor, hoje a região do Mediterrâneo da Turquia. Desde pequenos mostraram tendência para a medicina, tornaram-se médicos de profissão, principalmente dedicados às crianças. Isso me dava uma pista para elucidar minhas dúvidas sobre essa senhora, religiosa ao extremo.
Todos os anos, no dia 27 de setembro, dedicado a São Cosme e São Damião, os Ibêjis, ela festejava a data com o Caruru de Cosme e Damião, convidando ao banquete sete crianças, com sete anos de idade, a participar em ritual semelhante aos praticados na sua matriz religiosa, o candomblé. Segundo a tradição afro-luso-baiana, existiam sete irmãos: Cosme, Damião, Doú, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi, daí, possivelmente, a quantidade de crianças convidadas.
A tradição do Caruru de Cosme e Damião veio para o Brasil trazida pelos escravos, que precisavam homenagear suas divindades, já que eram proibidos de professar a sua própria religião, levando-os a adaptarem seus guias espirituais, trazendo-as da religião católica.
Minha primeira participação nesse banquete, não como criança, óbvio, foi em 1968. Recém-chegado ao Sul da Bahia, mais precisamente em Itabuna, já ambientado, fui convidado para a festança do Caruru. Acompanhado daquela que seria a minha futura esposa, amiga de dona Helena, fomos a um bairro distante do centro da cidade, a casa encontrava-se repleta de convidados e alguns curiosos – penetras. Seria a primeira vez que experimentaria a tão falada iguaria.
A participação das sete crianças, que comeram com as mãos, já havia terminado, era a vez dos convidados. Aos sermos reconhecidos, fomos chamados para a cozinha, para ser apresentado à minha nova experiência gastronômica. Aproximei-me do fogão à lenha, erguido em um espaço fora da cozinha, olhei curioso para o conteúdo do panelão, e me fiz a seguinte pergunta – será que vou gostar dessa “gororoba”, vai dar para todos que estão lá fora? A namorada ao lado, já sentindo o aroma daquelas emanações aeriforme, respondeu categórica – vai sim, é muito bom. Tem muito mais sendo preparado ali. Isso vai até meia-noite, não se preocupe, completou ela.
Realmente aquilo passou de meia-noite, sempre chegava mais gente, deu para perceber o quanto era famoso o Caruru da Comadre Helena. Embora aparentando muito cansaço, não deixava de receber a todos com amabilidade. Contava com colaboradores na preparação dos pratos, que consistia em caruru – comida feita com quiabo cortado, camarão seco, pimenta malagueta, azeite de dendê, entre outros temperos – vatapá de camarão, xinxim de galinha e o famoso arroz de coco.
A primeira tentativa não me foi agradável. Comer aquela baba, juntamente com dendê, que nunca tinha visto, causava-me repugnância. Já havia experimentado o acarajé e não tinha gostado, era tudo novidade, de sabor diferente e muito condimentado, minha comida era mais light. Com o tempo passei a gostar cada vez mais, exceto do acarajé.
Por algumas vezes mais fomos convidados para o Caruru da Comadre Helena, sempre bem frequentado e aplaudido. Passei a chamá-la, assim, pelo constante contato, cujo modo de viver e ser, demonstrava sempre paz em seu coração. Com a nossa transferência para outra cidade, não nos foi mais possível contar com as sábias e gostosas histórias que ela nos contava, principalmente de sua vida, cheia de exemplos comportamentais e superação.