Mambembe

Tinham show às dezessete horas em Hortolândia.

Chegaram cedo na cidade, apesar do trânsito caótico dentro do Complexo Metropolitano expandido.

Era uma festa particular, uma espécie de quermesse organizada por jovens locais, amigos de Mila Cox.

O local era uma casa com pouca área construída em um terreno bem grande em meio a um grande descampado.

A proprietária era uma agitadora cultural de Sumaré, que usava aquele imóvel para promover festas com apresentações musicais.

Era o primeiro show dos Crop Circles que o novo amigo Silvano acompanharia de perto. Ele nunca tinha visto ao vivo uma banda sem guitarrista.

Abririam para a banda Random Clowns, que iria estrear o novo baterista.

Eram amigos de MIla Cox e Zími, e faziam em seu trabalho uma poderosa sátira social, retratando a sociedade como um circo mambembe de horrores. O som era um hardcore que não fugia do comum, mas eram bons ao vivo.

Muita coisa aconteceu naquela tarde para Silvano antes que Mila Cox, ao subir ao pequeno palco e depois de avistar alguns curiós com camiseta da CBF na plateia, estimada em cento e vinte pessoas, abrisse o show avisando que ele e Zími não tocariam “Simple Man” e nem “Hotel California”.

A figura daquela garota que parecia ainda mais jovem por empunhar um imponente Fender Jazz Bass azul, parecia impressionar boa parte do público.

Dali em diante, pelo menos para Silvano, começava o segundo tempo do rolê.

Durante uma hora e dez minutos de show, os dois pareciam ser outras pessoas que não aquelas que o uruguaio Silvano conheceu como vizinhos de prédio no centro de São Paulo.

Uma hora de um esporro sonoro tão estridente, que era difícil acreditar que era produzido por um tiozinho de meia idade tocando um kit minimalista homenageando Slim Jim Phantom e uma jovem de dezenove anos tocando baixo e um teclado de churrascaria e um monte de pedais.. E sem guitarra.

Era um alívio para eles quando o show terminava e ainda havia outra banda para tocar.

O momento em que se juntavam ao público depois de tocarem, podendo assistir à outra banda, fumando e bebendo, proporcionava um sentimento difícil de explicar, algo que envolvia sensação de missão cumprida e de fazer parte de uma iniciativa que mobiliza jovens para ficar, pelo menos por algumas horas, longe do popularesco acintosamente imposto a todos eles.

Os episódios bizarros envolvendo gente deselegante eram um risco tão iminente quanto um pneu furado ao longo do rolê.

Depois de um show em Americana, no fim de semana anterior, um sujeito com chapéu e camiseta da CBF, bêbado, perguntou a Mila Cox se o sintetizador que ela usava tinha vindo gratuitamente com a compra de um pirulito.

Ela logo descobriu que ele era conhecido no lugar, porque era um playboy local, que tomava muito bullying porque na infância teve babá e motorista.

Dessa vez, Silvano podia ver da lateral do palco que Zími havia superado o pavor diante da possibilidade de dormir a próxima madrugada no carro, no caso de agendarem ali mesmo, após o show, uma nova apresentação para o dia seguinte, em outra cidade nos arredores.

O dia seguinte era domingo, e quando havia show, era marcado para a tarde, então havia pouco tempo para repetir o esporro estridente.

Zími explicava para Mila Cox que ele aguenta o rolê da mesma maneira que ela, mas que por ter trinta anos a mais, a recuperação é mais lenta. Ele jamais a decepcionaria nesse ponto.

Àquela altura da vida, ele procurava ficar longe de drogas e álcool sempre que possível, mas ele bebia muito nessas gigs.

Pouco antes de chegarem a Hortolândia naquele dia, passaram num alambique local, descoberto por Silvano, na internet, na noite anterior.

Então lá estavam às oito da manhã. Havia cachaças de muitas cores, e determinado a experimentar todas, Zími começou a tomar amostras oferecidas pelo proprietário, feliz pela satisfação do cliente, mas espantado com o fato de Zími ter um show naquele dia.

À essa altura, Silvano só faltou chorar para que ele parasse de beber. Zími tomou onze copos de pinga, uma de cada cor, e apenas dormiu no carro por duas horas, levantando a seguir e tomando uma lata de cerveja comprada numa padaria de Hortolândia.

O preço era atrativo, e compraram seis garrafas de aguardente, de cores diferentes.

Pelo menos, o fato de serem um duo ajudava na logística desses rolês em que há pouco a perder. Sabiam que não haveria grandeza onde não houvesse simplicidade.

Costumavam viajar no Chevette Jeans 79 de Mila Cox, mas dessa vez foram na Kombi de Silvano, com ele dirigindo. Ele tinha uma Kombi porque fazia carretos para complementar sua renda de investidor.

No percurso, muitas piadas sobre a banda estar se estruturando, sendo que Zími perpetua um sentimento especial pelo amadorismo. Para ele, aquilo era uma forma de estar vivo e distinto de seus amigos que beiram ou que chegaram aos cinquenta anos e que, por múltiplas razões, não podem mais se lançar nesse tipo de atividade.

Para Mila Cox, de dezenove anos, um show marcado no fim de semana era uma necessidade vital urgente. Planejava entrar na faculdade apenas depois de começar a consolidar seu projeto musical, no sentido de trazer ao seu som uma identidade que ela vê em artistas como Jane’s Addiction e Peter Gabriel, em seus três primeiros álbuns solo.

Haveria inúmeros outros artistas que poderiam ser citados por ela, por conseguiram, da forma que ela deseja, imprimir identidade própria à música, mas esses mencionados foram mais ouvidos na semana que antecedeu o show de Hortolândia.

Ela também era muito adepta do ‘faça você mesmo’, e contava com o vigor da juventude para tomar iniciativas que Zími deixaria de lado facilmente, como conversar em redes sociais para divulgar a banda e ir atrás de lugares em que pudessem tocar.

Eram tão fascinados pela loucura um do outro que o surgimento de Silvano parecia dar equilíbrio, ao admirá-los sem necessariamente entendê-los o tempo todo.

A ideia primordial era que mesmo com os gastos com gasolina e comida, eles tivessem algum retorno financeiro, para que ao menos não tivessem que pagar para tocar.

Naquele dia em Hortolândia, Silvano era responsável pela venda do merchandise, que daquela vez se tratava de um pacote com vinte e cinco cd’s que compilavam todos os singles que eles lançaram na internet até então.

Conseguiu vender todos, e segundo ele, sem tanta demora. Teriam dinheiro pra comer e encher o tanque para voltar a São Paulo.

Mas Silvano estava tão bêbado logo após o show dos Ramdom Clowns, que Mila Cox sabia que teriam que encontrar um posto de gasolina para estacionarem e dormirem.

Depois de seu show, ela tomou dois copos de uma cachaça de abacaxi que compraram no alambique e aquilo foi o bastante para embriagar seus cinquenta quilos de corpo e então não tinha qualquer condição de dirigir na estrada, principalmente num carro que não era o dela. E ainda mais sendo uma Kombi.

Quando metade das pessoas já tinha ido embora, ela viu Zími Sentado na caçamba de uma caminhonete, conversando com Jarbas, o vocalista dos Ramdom Clowns.

Cada um segurava uma garrafa de cachaça colorida que compraram no alambique na manhã daquele dia. A garrafa de Zími era uma cachaça com menta e a de Jarbas era de coco queimado.

Estavam apostando quem aguentava beber mais. A caminhonete estava a duzentos metros de Mila Cox quando ela os avistou. Até que se aproximasse, Jarbas já estava em péssimo estado, entregue, encostado na lateral do veículo.

Zími parecia bem, considerando o dia que ele teve.

Falava que Vargas Llosa era gênio das letras, mas que fracassou miseravelmente como revolucionário.

Estavam na rua em frente à casa da festa, e ali pairava a certeza de que nada, exceto a falta de um banheiro, atrapalharia uma noite de sono na Kombi de Silvano, que estava a cinquenta metros de distância deles

Apesar da festa estar no fim, ainda havia cerca de quarenta pessoas na casa, e um estoque de cerveja sem fim. Mila Cox ficou amiga de uma garota que havia levado sanduíches naturais para vender e sanou o problema da alimentação.

Dormiram na Kombi, mas dessa vez acordaram sem ter show marcado para aquele dia. Foram até uma pequena padaria, especialmente por causa do banheiro limpo que havia ali, e beberam muito café com bolo de fubá até onze da manhã.

Silvano parecia recomposto para dirigir de volta para casa, mas teve que ouvir breve e seca repreensão de Mila Cox por causa do jeito que olhou para a garrafa de cachaça de amora que Zími tinha na mão, mas ainda não havia aberto.

Entraram na Kombi e partiram de volta a São Paulo.

Silvano foi dirigindo e estava sozinho na frente, fumando maconha e falando sem parar.

A Kombi tinha toca fitas e ele colocou uma fita dos Los Shakers, que tocou até que chegassem na garagem do prédio.

Zimi bebia a cachaça de amora e Mila Cox olhava pela janela.

Os deuses em que acreditavam eram suas próprias consciências, e nada era pior do que ser tarde demais.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 16/02/2023
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