Vô, me leva pra ver o rio?


Os diálogos aqui relatados, aconteceram no escritório de um advogado idoso, em Rio das Pontes, pequena cidade do interior do Brasil. Pequena, porém próspera, em razão da agricultura e da pecuária. Chamava-se assim porque havia um rio com seis pontes que a entrecortava, cinco na parte interna da cidade e, a mais larga, na divisa com o município vizinho. As pontes estão lá até hoje, mas o rio... Bem, ouçam a história:

Doutor Antunes, era um advogado de 74 anos, servidor aposentado como Desembargador de Justiça do Estado, viúvo, e também dono de uma pequena propriedade rural, com algumas cabeças de gado de corte, vendidas para o frigorífico local regularmente e nas épocas certas.

Homem metódico, do seu escritório controlava toda a atividade econômica da sua propriedade e as despesas da família, além de atender à sua clientela, quase toda formada de fazendeiros, usineiros e agricultores, sempre atrapalhados em dívidas bancárias e com a União e também em envolvimento em questões agrárias com o INCRA, IBAMA e Sem-Terras. Estas eram as especialidades com que se notabilizara, tornando-se o mais requisitado advogado, não só da cidade, mas de outros municípios vizinhos.

Questões na Justiça contra os bancos, prorrogação de dívidas bancárias e com a União, restituição de indébitos fiscais, desbloqueio de bens, penhora, formais de partilha, questões trabalhistas relativas ao trabalho rural, questões agrárias com o INCRA, IBAMA e Ministério do Meio Ambiente, processos por crimes ambientais, projetos para obtenção de financiamentos junto ao Banco da Amazônia e BNDES, estas eram algumas das causas que sempre vinham parar nas suas mãos. Pobre do trabalhador rural cujo patrão fosse cliente do Doutor Antunes! Teria de fazer acordo, na certa, ou esperar, esperar, esperar, até sabe-se lá quando, e com poucas perpectivas de ganhar. Só o seu nome como defensor das causas, já impunha respeito aos advogados contrários e até mesmo aos juízes.

A bem da verdade, Doutor Antunes nem precisava mais trabalhar, pois aposentara-se com um bom salário, e com o que ganhou em suas vendas de gado e como advogado, foi-lhe possível formar um bom patrimônio e ter renda contínua garantida, mais do que suficiente para as suas necessidades e as da família. Mas ele gostava de trabalhar e dizia que fazia isso, não por necessidade econômica, mas por distração.

Só uma coisa conseguia fazê-lo parar de trabalhar: problemas com a sua netinha de nove anos ou algo que ela a ele pedisse e o obrigasse a interromper ou paralisar de vez seus afazeres. Aí, não tinha pra ninguém. Parava mesmo e só depois de atender às necessidades da neta voltava para o trabalho.

Certo dia, a mãe da menina precisou deixá-la no escritório do Doutor Antunes por duas horas, numa situação emergencial. O avô pediu à neta “Marcinha” que ficasse na sala dele, para evitar o tédio de ficar sentadinha na recepção, o que era quase impossível de conceber. Estava claro que aquilo não daria certo, pois alguma travessura dali sairia. Marcinha, com a curiosidade natural de uma criança de 9 anos, começou a observar todos os objetos da bem decorada sala: a estante “cheia de livros” , o frigobar do avô, a decoração, os quadros...

Foi então que, subitamente, iniciou o seguinte diálogo:

“ - Vô, por que é que minha mãe e meu pai chamam você de "Vô Babão"? Eu nunca vi você babar!...
- Ah, isso aí é uma brincadeira deles, só porque o Vô gosta muito de você.
- Vô, me leva pra ir ver o rio?
- Que rio, Marcinha?
- Aquele rio bonito ali, que está naquele quadro grandão, atrás da sua mesa.
- Ah, aquele?..., disse embaraçado. E prosseguiu: “aquele rio nem existe mais, é só um quadro”.
- Mas Vô, é um quadro mas é um quadro de fotografia, não é um quadro pintado. E se tiraram a fotografia, tem que ter o rio, não é?
- É mas não é bem assim. Você já não viu uma foto da sua avó?
- Vi, mas ela era gente.
- E também não existe mais, disse o avô.
- É, mas eu sei que ela morreu e o Rio das Pontes não morreu, senão esta cidade não ia ter o nome de Rio das Pontes. Se não tem o rio ela tinha de ter outro nome, não é?
- Poderia ser, mas o nome é uma homenagem ao rio e as pessoas gostavam muito dele e querem estar sempre lembrando.
- Mas por que ele não tem mais?
- Porque morreu, ficou seco, disse o avô. 
- Mas Vô, então por que não mudaram o nome da cidade pra "Rio Seco"?
- Já expliquei, Marcinha, o povo não quis. Preferiram deixar o nome antigo, em homenagem ao que era.
- E como foi que morreu?, perguntou a menina, esquentando o diálogo.
- As pessoas daqui, na verdade, os fazendeiros e os agricultores, o mataram.
- Mas Vô, como é que se consegue matar um rio? Você não disse que as pessoas gostavam dele?
- Disse, mas os fazendeiros e os agricultores faziam coisas erradas e não sabiam que isso mataria o rio. Por isso, hoje ele está seco, cheio de terra e até com mato nascendo em seu leito. Mas tem um pedaço dele que eles aproveitaram para plantações.
- E eles não foram presos?
- Não.
- Foi você quem defendeu eles?
- Fo...foi, disse embaraçado.
- E o que é que eles estão fazendo agora?"

Nesse ponto, fez-se um silêncio. Doutor Antunes ficou gélido, absorto, lembrando-se da sua atuação na “brilhante” defesa que fizera para os agricultores e fazendeiros, nos processos que sofreram pelos danos ambientais que causaram o assoreamento do rio e, por fim, a sua morte.

A neta interrompeu, insistindo:

- Por que você fez isso, Vô? Você devia era ter mandado prender eles. Se quisesse podia, não é Vô?
- É, podia sim, mas fiquei com pena deles.
- Se fosse eu, Vô, não ia ter pena não. Mandava eles pra cadeia. Vou estudar pra ser igual ao senhor, mas pra mandar prender quem mata. 

Confuso e já com a pressão alterada, pediu à netinha que esperasse um pouco enquanto ia redigir uma correspondência. Fez dois rascunhos, entregou-os à secretária e disse: " Faz uma carta circular deste rascunho e envia para todos os meus clientes. Esse outro, você faz um email igualzinho para todos e envia hoje mesmo. Ah, e se alguém ligar ou vier aqui para saber condições de novas causas, diga que não estou atendendo mais."

Então, pegou a menina pelo braço e disse: “Vamos embora, amor. O Vô vai te ajudar nisso e vai deixar você craque em condenar criminosos, principalmente os que matam rios e florestas”.

Jurou para si que faria de sua neta uma juíza. Trabalhou mais uns vinte dias, para resolver as pendências e, depois, nunca mais abriu o escritório, dedicando-se integralmente à sua querida netinha.

Afinal, foi o que sempre quis.

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A história contada acima ficou famosa em toda a cidade e regiões próximas a Rio das Pontes, porque o próprio Doutor Antunes se encarregou de divulgá-la, em roda de amigos. E, invarialmente, iniciava a narrativa assim:

"Veja que coisa interessante: foi preciso uma criança de nove anos para me mostrar o que eu, aos setenta e quatro, não havia conseguido enxergar [...]"

Quem não gostava muito de ouvir a narrativa eram os agricultores, os madeireiros, os fazendeiros e usineiros. Diziam que "o velhinho estava ficando gagá ". Será?