De carona no carro de boi

 Adriana Ribeiro

 

     A memória da gente é como uma enorme colcha de retalhos miúdos que, quando bem dobrada, esconde uns tacos de pano – lembranças - e nos mostra outros, como se os que põe em evidência representassem o presente - as vivências mais recentes e importantes - e os que esconde embaixo das dobras simbolizassem o passado - não mais objetos de preocupação – compondo assim, as partes imprescindíveis de um todo que é a nossa colcha (vida) em processo contínuo de costura...

     Vez em quando o nosso cérebro arruma o armário de lembranças e sacode a colcha de retalhos para tirar o mofo mas, antes de voltar a dobrá-la, um pequeno retalho chama-nos a atenção sem nenhum propósito aparente, e lá se vai o nosso pensamento involuntariamente em busca das emoções vividas em tempos idos…

     Foi assim que outro dia eu me vi recordando uma das minhas aventuras de infância! Viajei no tempo sobre um retalho de memória pueril, como se este fora um minúsculo tapete voador …

     Voltei ao meu período de pré-adolescência, quando passava as férias escolares na fazenda Santa Mônica, onde o meu pai trabalhava na época. A referida propriedade que fica situada no município de Santa Luzia do Itanhy, no território sergipano, há muitos anos fez parte do antigo e próspero Engenho Cedro – que na época já estava desmembrado em três partes com a partilha das terras entre os herdeiros.

     O território da fazenda Santa Mônica, que coube à herdeira mulher - a Dona Ivani Ribeiro, como passou a ser chamada após o casamento com o político lagartense Zé Ribeiro, patrões do meu pai - iniciava-se depois do Rio Gurerema no sentido de quem adentra as povoações rurais a partir da BR 101.

     A sede da propriedade ficava logo após a ponte de madeira, construída um pouco acima da passagem pelo rio, seguindo o curso original da Estrada Real. Ali mesmo na encosta do planalto que ficava à direita fora erguida a casa grande e as moradias dos trabalhadores. Bem próximas à passagem do rio onde eu costumava tomar banho e pescar de jereré para pegar aratanhas, até que um muçum ou alguma cobra d’água viesse se juntar à folia, fazendo-me desistir da aventura e do instrumento de pesca que, invariavelmente, findava largando ao sabor da correnteza por conta do susto e do medo.

     Essas aventuras inocentes rendiam um pequeno prejuízo ao meu pai que, a cada temporada de férias era obrigado a ressarcir os vizinhos pelo jereré que eu “perdia” no rio, pois, apesar da cara de bravo que ele fazia proibindo-os de emprestar-me o artefato, todos sabiam que ele era gente boa e, no fim, ninguém tinha coragem de negar o utensílio de pesca artesanal à filha “da primeira família” (era assim que se referiam a mim) do gerente da fazenda.

     Mas pescarias frustradas à parte, muitas coisas me encantavam naquele espaço rural bucólico, tão cheio de vestígios e costumes do período colonial, a começar pelos imensos e velhos casarios. Três no total. Construídos sobre porões e assoalhos de madeira. Apenas o casarão mais antigo ficava ao lado de um grande armazém que ficava próximo à vila de moradores construída ao pé dum morro e logo mais abaixo ficavam as casas do capataz e do vaqueiro da fazenda.

     Mais abaixo, próximo a estrada que dava acesso à povoação, havia também um açude junto ao qual erguia-se uma imponente roda d’água que fazia o moinho se movimentar - com a força da gravidade hidráulica - para a fabricação do açúcar e do melaço, entre outros artigos da economia local. Ali perto também fora erguido um antigo bueiro de tijolos de alvenaria, tão imenso e bem erguido que as vezes o seu aspecto afunilado remetia a uma gigante palmeira imperial centenária.

     Tudo isso me veio à mente num pequeno espasmo de memórias, mas o que me tocou mesmo naquele instante de reminiscências foram as lembranças dos inusitados passeios de carro de boi! ...

     Seu José Elpídio dos Santos, mais conhecido como Seu Dedé, era um exímio carreiro e comandava com maestria uma bela junto de sete bois mamilados, alguns tão dóceis e obedientes quanto bonitos e robustos.

     Antes do sol nascer eu já ouvia a orquestra comandada pelo velho carreiro e seu carro cantador! O som agudo produzido com o atrito das rodas de madeira no eixo de ferro parecia se harmonizar com as pisadas ritmadas dos marruás e completavam a cantilena do velho comandante:

     _ Rae! Boi manhoso!

     _ Apruma a estrada Roxo lindo! Áaaa ê!

     _ Soberaaano!!! Que é isso?

     _ Lindo Rooooxo! Boi sem vergonha! Êa!

     E lá se ia a imensa carroça - ainda vazia àquela hora do dia - sendo conduzida pela figura mais icônica que eu já conheci em toda a minha vida. Um misto de maestro e tenor, cuja batuta era um ferrão gigante, o palco era o cabeçalho do carroção e os músicos eram os bois, as rodas e a própria estrada. A partitura musical e a letra eram as demandas - cargas pesadas ou leves, fáceis ou difíceis de carregar – junto com o humor do maestro e dos músicos.

     Em dias amenos a sonoridade produzida era bela e harmoniosa. Mas se os ânimos estivessem exaltados devido um dia ruim o “moído”, quase “um pregão”, era em outro tom.

     Alguns dos bois, apesar de bem domados e treinados para o serviço, eram bem geniosos, principalmente as parelhas mais novas. O boi guia nem sempre estava com humor para “ensinar” o seu ofício e os aprendizes, via de regra, o tiravam do sério com as peraltices de bois moleques.

     Seu Dedé era a paciência em pessoa mas, vez em quando, também descia do cabeçalho para castigar os indisciplinados e suas advertências nem sempre eram só em palavras.

     No período em que me recordo de ter abusado das caronas no carroção, a parelha aprendiz era formada por dois bois de aproximadamente dois anos de idade, pesando entre treze e catorze arroubas de pura força e valentia, segundo ouvia o experiente carreiro dizer a quem lhe perguntava.

     Os dois garrotes tinham nomes em forma de trocadilho. Um chamado de Lindo Roxo e o outro de Roxo lindo! Mas eu não saberia dizer quem era quem, pois, aos meus olhos eram diferentes apenas no tom da coloração, que também era muito semelhante por sinal. Ambos tinham o dorso de coloração mista, em tons mesclados de preto amarronzado e cinza grafite, cujas bases dos pescoços eram bem escuras. Apenas Roxo Lindo tinha a toalha cheia de pintas claras como um céu estrelado enquanto Lindo Roxo não tinha manchas - era o que me dizia o bondoso carreiro quando eu perguntava como fazia para diferenciá-los.

     Já o boi Soberano, o guia de toda a junta, era o mais manso e mais velho de todos, pois fora criado e treinado para o ofício pelo próprio Seu Dedé, desde bezerrinho e tinha um trabalho danado para manter o carroção na estrada quando os dois novatos entendiam de querer ser livres.

Essas e outras informações eu ia recolhendo entre a casa do meu pai e a das amigas com as quais eu queria brincar, mas que moravam do outro lado da enorme ponte de madeira que cruzava o rio. Como sempre fui medrosa demais para atravessá-la a pé, ficava de butuca na estrada esperando a volta do velho carro de boi que passava sempre um pouco depois das oito horas da manhã!

     Seu Dedé era o avô de duas das minhas companheiras de traquinagens e, por isso, já sabia que eu sempre cruzava o rio para procurá-las e, de quebra, dar trabalho e despesas em sua casa. Mas, mesmo assim, parava o carroção para me ajudar a subir e sentar no fundo da mesa com as pernas balançando no ar. Na passagem do rio, mesmo em épocas de estiagem, dava para molhar os pés na água e se não prendesse bem com os dedos o bidogo das japonesas a correnteza as arrancava dos pés e arrastava leito abaixo.

     Um pouco depois do almoço o Carro de boi descia a ladeira do velho armazém em direção aos campos de capim e eu, quase sempre entretia-me com as brincadeiras, perdia a hora e tinha que sair apressada para não perder a carona de volta pra casa.

     Quando chegava em frente a pequena vila de moradores, entre as quais ficava a que meu pai morava com a família, eu descia do carroção e, cheia de alegria, despedia-me do Velho Carreiro, agradecendo e acenando com as mãos, porém, só subia pela estradinha que levava até a residência quando o carro de boi se escondia na curva do caminho, deixando para trás a trilha sonora que eu tanto admirava - a aguda cantilena das rodas do carroção, que sempre subia um tom depois do banho de rio. Era lindo de se ver e ouvir!

     Quando entrava em casa e meu pai reclamava por eu “ter ido comer na casa dos outros”, me entristecia um pouco, mas eu sabia que ele estava com a razão e, no fundo, queria apenas me educar. Mas a casa daquela família humilde, no entanto, tinha cheiro e gosto de acolhimento, por isso eu sempre acabava voltando a pegar carona no velho carro de boi.

     E lá ia eu... Encantada com a musicalidade daquele rústico meio de transporte até a outra banda do rio...

 

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 13/02/2023
Código do texto: T7718789
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