A HISTÓRIA DA CACHAÇA.
-"Escondam as garrafas, o Bertinho chegou." Gritou o Aparecido, na banqueta, no canto esquerdo do balcão do Boteco do Nonô. -"Não liga pra esse miserável, tenho cachaça pra três meses." Disse o Nonô, jogando o pano de prato sobre os ombros. O mulato alto e esguio puxou um banquinho. Botou o chapéu sobre um engradado de cerveja. -"Bom dia, meus amigos. Uma branquinha pra começar." Bertinho era um sujeito estudado, nascido no Sacramento, baixo de classe média alta do Recife. A mãe dele faleceu quando o moço tinha vinte janeiros. Desolado, seu Felisberto decidiu ir para o Rio, levando os filhos, Bertinho e Solange. Os cassinos atraíram o sisudo bancário. Felisberto perdeu a casa e o carro nas roletas e máquinas caça níqueis. Solange casou-se e se viu livre do pai, um alcoólatra. Felisberto Filho, o Bertinho, foi pra São Paulo. Passou no vestibular e cursou dois anos de Engenharia. Fazia das tripas coração pra pagar o aluguel e a faculdade. Trancou a faculdade e decidiu voltar ao Recife. Doze anos sem ter notícias do pai. -"Meu pai só me deu o amor a cachaça." Repetia a quem o questionava de sua família. O Aparecido gostava de provocá-lo. -"Está sempre lendo, Bertinho. Sempre com livros debaixo do braço e com essa pose de intelectual. Se é inteligente, diz aí, como surgiu a cachaça?!" O moço ajeitou os óculos e olhou sério para o outro. A turma da sinuca parou. O Nonô passou a mão na barba, ansioso. O Juca parou de arrumar as mesas na varanda e se aproximou. Conhecia bem o Bertinho e sabia que ele não tolerava afrontas. -"Assim, de graça?! Conhecimento é valioso, meu caro!" Aparecido ficou imóvel. Ele era um exemplar original do famoso mão de vaca e só entrava em apostas em que teria alguma vantagem. -"E aí, vamos apostar que eu conheço a história da cachaça?!" O Juca, que de bobo só tinha a cara, sacou uma oncinha do bolso e bateu com força no balcão. -"Aposto cinquenta no Bertinho." O Eliabe, um dos rapazes da sinuca, apostou no Aparecido. Quatro pessoas seguiram o Eliabe. -"Bertinho sabe tudo de engenharia, comida de boteco e futebol. Cachaça?! Sabe de nada inocente." Zombou o Eliabe. O Nonô amparou o celular numa bandeja de ovos. -" Vou filmar a resposta do Bertinho. Depois veremos na internet se ele falará coisa com coisa." Bertinho pediu outra dose. -"Pra molhar as palavras, sabe?! Cachaça, cana, caninha, aguardente, branquinha, pinga, água que passarinho não bebe. São vários nomes pelo país. No Brasil colônia, tinha um químico brasileiro, de nome João Manso. Ele criou inovações nos alambiques e nas tecnologias de criação da cachaça. Logicamente, todas vistas com desprezo pela comunidade fabricante da pinga, todos senhores ricos e conservadores. João Manso desenvolveu alambiques modernos pra época. Sugeriu usar frutas pra fazer cachaça, isso foi a gota d'água pra ele ser chamado de louco. A rainha Maria primeira, de Portugal, tinha decretado que era proibido qualquer manufatura ou fábrica no Brasil. O João Manso tinha achado uma argila branca de excelente qualidade, no Rio. Ele passou a fazer louças, porcelanas e esculturas. Ele fez um busto da rainha e outro do marido dela, o don Pedro III. Em 1793, a rainha mandou uma carta, ordenando ao governo brasileiro que desse ao João Manso todo apoio pra fabricar o que quisesse. Oras, isso contrariava o decreto dela mesma. No seu livro Memória sobre Reforma de Alambiques, João Manso discorda da produção de cachaça, da fermentação e do tempo de destilação. Era muito tempo pra destilar, ficava pingando por horas, daí vem o nome pinga. Os alambiques, na maioria, eram modelos de barro, usados no Egito, duzentos anos depois de Cristo. Tinham a caldeira, onde a cana fermentada fervia. Tinha o capitel, o bico do capitel por onde o álcool evapora e sobe. A serpentina, onde o vapor cobdensa e se torna líquido. João tinha a proposta de fazer a saída da caldeira mais estreita, usando água fria pra resfriamento do vapor. O vapor voltava e só depois atravessaria a saída, deixando pra trás componentes indesejáveis pra qualidade da cachaça. Mais de cem anos depois, químicos provaram que muitas idéias de João Manso estavam corretas, era um visionário, um homem a frente de seu tempo. De quatro a cinco dias antigamente, hoje se faz pinga em três horas. Não há um consenso sobre as primeiras cachaças feitas no Brasil. Estudiosos divergem sobre os engenhos de Igarassu ou Ilha de Itamaracá, em 1516, em Pernambuco. Em Porto Seguro, na Bahia, em 1520, ou ainda em São Vicente, em São Paulo, em 1532. Anos depois, Portugal proibiu a venda da bebida, chamada de vinho de mel. A cachaça era a nova moda, sendo concorrente do vinho e da aguardente de uva, produtos portugueses. A pinga era cem por cento brasileira. A pinga passou a ser a principal moeda de troca de escravos, nas feiras e portos africanos, no século dezessete. Cachaça deriva de cagaça, uma pinga dos escravos. Com a queda dos impostos da mineração, a Coroa aumentava os impostos da cachaça. Nas fazendas de café, os patrões eram incentivados a distribuir cachaça após os trabalhos. A cachaça mantinha a paz e a ordem nas senzalas. Há trezentas substâncias na cachaça, a maioria água. Etanol, ácido acético, álcool isoamilico, aromas frutados e florais, acetato de etila, entre outros compõem a cachaça ou café branco, a marcada. Foi muito usada como remédio, combatia febres, tremor da malária, limpar machucado e curar efeitos de picadas de aranhas e cobras, esquentar o frio, esfriar o calor, homenagear santos e animar bailes. O Ministério da Agricultura do Brasil catalogou 3.650 marcas de cachaça e 951 produtores. Em Minas estão a metade deles, uai. Por lei de 2006, cachaça e aguardente são bebidas diferentes, variando o teor alcoólico e o volume. A cachaça é mais fraquinha." Todos estavam boquiabertos. -"Aí, Bertinho. Arrasou, meu amigo." O Juca puxou as palmas. -"Depois desse palestra, dou o braço a torcer. Parabéns, Bertinho. Até vou pagar uma rodada de vinho de mel pra todos." Disse o Aparecido, abraçando o Bertinho. -"Sabem que me deu vontade? Ir para Minas e trazer umas garrafas de cachaças artesanais, pra servir aos clientes especiais. Que acha, Bertinho?" Disse o dono do boteco, entusiasmado. -"Excelente idéia, Nonô. Eu tinha uma idéia errada sobre a cachaça mas estudei e vi que sua história é tão interessante. É a história do nosso Brasil."