FICA PARA A PRÓXIMA
— Vai pro gol!
Ele ajeitou o goleiro no canto esquerdo da meta. O arqueiro era uma caixa de fósforos da Luminar, cheia de pedrisco, envelopada com fita isolante e com o escudo do Corinthians no centro. Deixou-o na diagonal, “de frente pro lance”, como diria aquele radialista. Juntei a palheta com as duas mãos e envolvi o Ademir da Guia no arremate tipo aranha, mirando o canto direito. O vão era justo e tinha como direção o único espaço visível da renda no fundo do gol.
— Pronto! — avisou ele.
A bolinha era um rodízio de cortina de plástico e saiu firme em ascensão, até morrer no ângulo direito. Tiro certeiro. Saí pulando, comemorando o gol com o soco no ar. Três a zero na final do campeonato do dia. Dois do Ademir e um do César Maluco. Olavo — o Lalá —, queria morrer de raiva. O rosto dele ficava vermelho, quando perdia.
— Assim não vale! Toda hora você faz de cobertura, seu rabudo — reclamou.
— Isso é competência e treino, Lalá! Não é para qualquer um.
— Deixa eu jogar com o Palmeiras uma vez para você ver.
— No próximo campeonato, amanhã, eu deixo.
Reunir-se com os amigos e disputar campeonatos de futebol de botão era nosso passatempo diário nas férias. Eu tinha todos os times clássicos. O Santos de 1963, São Paulo e Palmeiras de 1972, o Corinthians de 1974, a Portuguesa de 1976, a Ponte Preta de 1977 e o Guarani de 1978. E ficou ainda mais frequente, quando meu tio fabricou o Maracanã. Um retângulo de madeira compensada de um metro e sessenta por um metro de largura, envernizado e nivelado para a prática do esporte preferido da molecada.
Rodávamos com o bichão por toda a Ipaussu, indo até a casa de cada um. Na casa do Biel, porém, não dava. A mãe dele tinha um ciúme desgraçado do chão de sinteco luminoso. Tinha medo dos suportes de madeira riscarem o chão.
Meu tio Anselmo teve a pachorra de montar as traves com arame e encaixes, para vestir uma rede de pano e parafusos, fixando com travas por baixo do campo. A Terezinha, irmã do Téo, costurou a renda de uma cortina lá de casa. Meu cachorro Lobo brigou com o Floquinho, o gato da minha irmã e os dois rasgaram tudinho. Minha mãe jogou no lixo. Reaproveitei os rodízios para as bolinhas. Eram dois panos, um mais grosso e liso de algodão e o outro a renda que a Terezinha costurou.
No dia seguinte, novo campeonato e deixei o Lalá pegar o Palmeiras. O Téo ficou com o São Paulo, e o Biel com o Corinthians. O Zezinho pegou a Portuguesa e o Marquinho preferiu o Guarani. Peguei o Santos e fomos para a casa do Marquinho. Sorteamos dois grupos de três times. O melhor de cada grupo iria para a final. Todos os times jogariam entre si, valendo dois pontos por vitória e um por empate. Corinthians e São Paulo, um clássico na abertura do certame.
Depois dos dois tempos de dez minutos, empate em três gols. Palmeiras e Guarani na sequência. Lalá fez cinco a um e ficou todo feliz. Então entrei em campo com o Santos e veio a pergunta:
— Ué? Dorval, Mengálvio, Coutinho e Pepe. Cadê o Pelé? Por que Almir? — indagou o Marquinho.
— Porque vocês não iriam aceitar o Pelé. Então deixei o time no original, com os botões todos iguais.
Todos zombaram, me achando pretensioso demais.
— Hum, nossa! É de ouro, por acaso? É só um jogo de botão, cara!
Deixei terminarem a zoeira e tirei do bolso da jaqueta a celuloide. Os olhares se arregalaram, os queixos caíram. A tampa de plástico curvo do relógio de bolso do meu avô era o “meu” Pelé.
— Vocês querem que eu troque?
— De jeito nenhum! — proclamou o Lalá — O time é de botão, tudo igual, sem chance.
— Não falei? Vocês iam amarelar, mesmo. Sabia!
— É muito fresco isso, Juca! Diferente só porque é o Pelé?
Sorri com a admiração deles. Era um privilégio conseguir uma celuloide naqueles dias. O Seu Luiz, da relojoaria, já tinha dito: descartar um relógio antigo é muito difícil. Pagam para restaurar e vendem por um preço alto. Colecionadores adoram. Era difícil dispensar uma lente. O relógio do meu avô não teve conserto e estava jogado em uma gaveta de coisas antigas lá em casa. Não faria falta nenhuma. Arranjei uma foto do Pelé colorida, com a camisa da seleção, pequena o suficiente para colar por baixo. Passava vela e lustrava para ficar brilhando. Todo chute ia por cobertura, mesmo sem usar as mãos em aranha.
— Por isso não escalo ele. Se nos campos, o cara foi de outro planeta, aqui no jogo de botão, não pode ser diferente, né?
— Ah, e por acaso você viu jogar?
— Não, mas meu tio Anselmo é santista e tem um álbum de recortes. Conta umas histórias sensacionais do cara. O apelido de Rei, segundo ele, não é à toa. — O silêncio deles me instigava a continuar — Meu tio foi quatro vezes ver o Santos no Pacaembu, na época que ele jogava.
— Então vamos pro jogo, vai — pediu o Marquinho.
Empatei com o Guarani, perdi para o São Paulo, ganhei da Portuguesa e do Corinthians e ia jogar com o Palmeiras do Lalá. Ele não havia perdido nenhuma partida e tinha média de quatro gols por jogo. Precisava ao menos empatar para chegar na frente do Téo, no meu grupo. São Paulo e Santos empatariam em pontos, mas eu levava vantagem no saldo de gols. Com isso, iria para a final contra o mesmo Lalá. Ou seja, brigava por um empate e uma vitória contra o mesmo oponente.
Terminou o primeiro tempo. O placar era dois a um Palmeiras. O Lalá ria e já comemorava a campanha invicta, faltando pouco tempo para terminar a partida. Ajeitei a bola antes do meio-campo e gritei:
— Vai pro gol!
— Daí? Duvido! — retrucou ele.
— Falta um minuto para acabar. Se eu fizer esse gol e empatar, posso escalar o Pelé na final?
Percebi uma sombra de dúvida naqueles olhos verdes. Pôs a mão no queixo, como se fosse um enxadrista calculando as possibilidades do próximo lance.
— Tá falado! Tá valendo!
Preparei o arremate simples dessa vez, mas mudei o ângulo da palheta. O chute saiu baixo e direto no canto. Estufou a rede. Dois a dois. Ele respirou fundo, pegou a bola no fundo do gol e deu a saída com rapidez. No segundo toque, gritou:
— Vai pro gol!
Olhei o relógio e o ponteiro de segundos estava saindo do oito e subindo. Droga, valeu o pedido — pensei com meus botões. A regra é clara: se gritar antes de acabar o tempo, pode chutar. A bolinha diante do Ademir da Guia e o Lalá ergueu as mangas da camisa para fazer o arremate aranha.
— Pronto! — disse eu tirando as mãos do goleiro e esperando o chute.
Bom, não deu para escalar o Pelé.