FOLHEANDO O PASSADO.
Thadeu Eliodoro acordou ansioso naquele sábado. -"A feijuca do Estácio. É hoje." Esfregou as mãos, pensando na iguaria. Conferiu o ingresso na carteira, junto da nota de dois dólares que carregava como amuleto da sorte há décadas. -"Vou comer só uma bandinha de pão, pra sobrar espaço pra feijuca." Disse pra mãe, dona Carminha. Thadeu bateu o ponto no bar do Anézio. -"Feijoada de respeito, Thadeu. A do Estácio é a melhor, com direito a caipirinha tradicional, a farofa campeã de dona Das Dores não pode faltar, a couve cortada fininha, milimetricamente, por dona Fátima, esposa de Seu Raimundo, palhaço na folia de Santos Reis de Seu Ermelindo." Disse o Ibiraci, mestre sala da escola de samba do bairro, a Estação Primeira e Única do Morro da Serrinha. Ibiraci, Joca e Thadeu pediram outra cerveja, no bar do Anézio. -"Feijoada tem que ter laranja, vinagrete, arroz soltinho e pimenta batida com caldo de feijão preto e cheiro verde." Lembrou o Ibiraci, salivando. -"Tudo faz parte, turma." Thadeu pediu uma branquinha. -"Uma cachaça, Anézio. Pra ir esquentando os tamborins." Thadeu deu uma "beiçadis", como diria o Mussum. -"Esquecemos de uma coisa, turma. A tradicional pururuca, torresminho lá em Minas. É um ingrediente que não pode faltar na feijuca." O homem de cinquenta e sete janeiros pediu outra dose de cachaça. -"Não vai encher o caneco, Thadeu. Não faz igual quando a Clementina foi embora." O Bira deu um tapa na mão do Anézio. "Tem que lembrar disso, português?! O homem é sensível." Thadeu riu e fez sinal de positivo com o polegar. Há três semanas, a esposa de Thadeu o abandonou, dando fim a relação de vinte e seis anos. Thadeu tomou todas no boteco do Anézio, precisando ser carregado num carrinho de mão até a casa de sua mãe. Clementina, uma morena brejeira de Niterói, era quinze anos mais nova que o antigo radialista da rádio Copacabana. O moço de Nova Friburgo, radicado na cidade maravilhosa desde os sete anos, encantou a morena de olhos de jabuticaba com sua voz de veludo e ao mesmo tempo potente e pausada. Thadeu não era só voz bonita, trazia olhos verdes e um sorriso perfeito, que filho de dentista tem de graça. Alto e esguio, Thadeu Eliodoro, lembrava mais um ator Hollywoodiano dos anos cinquenta. Cantador de pedra dos bingos da paróquia de frei Serapião, o jovem Thadeu ganhou sua primeira oportunidade aos quinze anos, na rádio Itatiaia, auxiliando nas narrações de partidas de futebol. Ficava escutando os outros jogos e repassava os resultados ao narrador. Fazia de tudo um pouco, esperando sua grande chance, que só veio aos vinte anos, quando o repórter de campo faleceu, atingido por um raio, num jogo em dia chuvoso. -"Vai lá, garoto. O microfone é seu." Disse o narrador. Thadeu não largou mais o microfone. Fez cursos na área, se especializando. Sem dinheiro e grandes patrocinadores, Thadeu pulava de rádio em rádio, todas no interior. Aos quarenta, mudou-se para o Ceará. -"No nordeste, o antigo rádio ainda impera. Sobrevive sobre as redes sociais avassaladoras do rádio e da tevê." Ele repetia aos familiares e amigos. -"Eu descobri o Falcão." Ele dizia e diz até hoje, se gabando. -"Não o Falcão jogador da Roma e Internacional mas o Falcão comediante. Eu tinha um programa de madrugada, As Boas da Madruga, na rádio de Fortaleza, a 156FM. O Falcão fazia backing vocal de uma banda de forró, Mel com Rapadura. Eu disse a ele que largasse aquilo e fosse fazer parodia." Sucesso, dinheiro e Thadeu Eliodoro nunca andaram de mãos dadas. O antigo radialista voltou ao Rio. O vozeirão serviu pra vender mate na praia. Era o que lhe ofereceram pois as rádios lhe fecharam as portas. Cansada, a companheira se foi. -"Cai na real, você tá ficando velho." Disse o moço atrevido, passando a mão na nuca do Thadeu. O tapa veio ligeiro até mas o negrinho se abaixou. Thadeu ficava puto de ser chamado de velho. Os amigos o seguraram. -"Velho é a vovozinha." Ele espumava. Ânimos apaziguados, Ibiraci acompanhou Thadeu até sua casa. -"Daqui duas horas, partiu Estácio." Disse o Bira, eufórico. Tempo depois e após meia hora de viagem no busão da linha 643, os dois amigos chegaram ao barracão da escola de samba. Os grupos de pagode se revezando no palco. Uma muvuca grande, cada pessoa querendo falar mais alto que a outra. Os convidados, na maioria, com o abadá da festa. As mesas numeradas. Na mesa com os parceiros, o Thadeu não parava de criticar o locutor oficial da festa. -"Vozinha mequetrefe essa daí. Sou muito mais eu." Os demais concordaram, mais pra agradá-lo. -"Bora lá, se servir da melhor feijoada do Brasil." Disse o Thadeu, se colocando no fim da fila. Ele voltou a mesa, sorriso de orelha a orelha. Afastou as latinhas de cerveja, abrindo espaço para o prato. -"Aqui é o recuo da bateria." O guardanapo. Franziu a boca após a primeira garfada. -"Obrigado, meu Deus. Que delícia." O melhor deixou pro final, as grandes e grossas pururucas, torresmos monstros. -"Tem que fazer croc. Tem que pegar com a mão e deixar escorrer a gordurinha." Disse o antigo homem do rádio, desabotoando a camisa. Ele mordeu com força e apetite voraz. Os amigos da mesa olharam surpresos. O torresmo fez croc mas algo fez tic no prato. Era o dente da frente do Thadeu. Olhando incrédulo, ele sorriu com a janelinha. -"Sério isso, galera. Meu dente caiu justo aqui!" Passou as mãos no cabelo encaracolado e tingido de castanho escuro precisando de retoque. -"E agora, Bora?! Onde vou arrumar dentista no domingão?" Os amigos seguravam o riso. Thadeu empurrou o prato e cruzou os talheres, dando a entender que a sua refeição estava encerrada. Ele cobrou a boca com o lenço pois sentiu um gosto de sangue na boca. -"Tem ambulância no evento mas não creio que possam ajudar o senhor." Disse o garçom, gentilmente. -"Senhor é a vovozinha, idiota." Thadeu era vaidoso e ficava irado ao ser chamado de senhor. O Bira chamou um primo dele, que conhecia um dentista que morava no mesmo prédio dele -"O Ravanelli atende emergências, é um cara legal." Adilson ligou para o dentista. -"Está certo, então. Estamos indo para o seu consultório. Obrigado, doutor." Thadeu deu um tapa no ombro do Juninho, primo do Bira. -"Doutor? Aonde dentista é doutor?! Doutor é quem fez doutorado, meu caro." O cara tentando ajudar e ainda leva esporro do Thadeu. -"Em quarenta minutos ele estará lá. O doutor, o dentista está numa partida de tênis." Explicou o Lucas no seu carro. -"Você não perguntou o valor?! Pô, se ficar caro, você vai pagar!" Lucas riu. O Bira apaziguou. -"O dentista tem que avaliar, Thadeu." Lucas teve vontade de parar o carro e fazer o Thadeu descer mas relevou. Decidiu ficar quieto e não criar confusão com aquele mala sem alça. Minutos depois, ao chegarem a clínica, viram uma moça abrindo a porta. -" Boa tarde. O doutor Ravanelli me ligou. Vim rapidinho pra abrir a clínica e preparar o material. Podem entrar." Lucas e Bira entraram, subindo a escadaria. Thadeu colocou a mão no ombro da moça. -"Primeiro as damas, por obséquio. Não sou sem educação como esses dois aí." A moça sorriu. Eles ficariam na recepção enquanto a assistente do dentista entrou noutra sala. Thadeu observava cada detalhe. -"Cortinas velhas, vieram do palácio de som Pedro segundo, provavelmente. A mesa de centro é arcaica, não combina com o sofá. O tapete é horrível. Essas cadeiras vieram do vestiário do Madureira, horríveis. Não tem tevê no consultório?! Esse cara tá na idade da pedra. Ao menos a assistente é brotinho." Lucas riu. -"Tem razão. Tudo aqui é velho menos ela. Até os pacientes são velhos, como tio Bira e o senhor." Thadeu ficou vermelho e fuzilou o rapaz com o olhar. -"Não responderei devido ao meu estado de saúde. Vim no seu veículo e sou grato por isso, Lucas. Vamos tomar um chá de cadeira." Amante da leitura, sendo um devorador de livros, a pilha de revistas chamou sua atenção. -"São velhas, não vai gostar." Vira se adiantou. Thadeu pegou algumas revistas. -"Atual nem o jornal, que é de anteontem." Observou o Thadeu. -"Seleções de 1994, ano do tetra. A boa era a revista americana. A versão brasileira é fraca. Contigo, dos anos 90, com Tony Ramos e Fernanda Montenegro galãs. Isso é relíquia, nem a Globo tem isso. Revistas de Aparecida, Canção Nova e Divino Pai Eterno. Esse dentista só tem clientes católicos, por acaso?! Se vier um paciente evangélico aqui? Um espírita ou um monge budista, vai ter que ler revista católica enquanto esperar?! Revista Veja, na capa o candidato a presidente Fernando Henrique Cardoso! Gente, o Lula está no terceiro mandato. FHC tá dobrando o Cabo da Boa Esperança. A melhorzinha daqui é a National Geographic, com PH. Aliás está em inglês, absurdo. As vovós que vêm aqui não entendem nada. Vou ler pois fiz parte da primeira turma do FISK, o top dos tops dos cursos de inglês, febre nos anos 80. Frequentei o CCAA, que a galera soletrava CiCiEiEi, muito mais chique e correto." Lucas fingia não dar ouvidos mas estava rindo muito por dentro. -"O senhor deveria ser narrador de revista velha de consultórios. Leva jeito." Thadeu não gostou. -"Isso. Monta um canal no YouTube sobre isso. Quinquilharias do Thadeu. Essa coisas dão dinheiro." Thadeu era desafeto e contrário as redes sociais e internet. O ogro não tinha nem Facebook. -"Dinheiro, eu preciso pois ainda não sou aposentado mas ir pras redes sociais pagar mico? Tô fora. Influenciador digital, um louco liderando e dando conselhos a outros, malucos ou mais loucos que ele. Tô fora. Essa revista é de 2000. Vinte e três anos de idade, apenas. Ulalá, lançamento da impressora HP, colorida. Estão quase obsoletas atualmente. Minivans da Chrysler, duas portas. Não eram feias mas sou mais o velho Del Rey. Meu pai deixou o dele pra mim de herança. Oh, computador Dell, da Intel. A novidade eram as caixas de som. 64 MBs, é pra rir. CD Room, maluco, não existe mais o CD e se passaram duas décadas. Anúncio de telescópio portátil. Esse eu queria. Tenha a galáxia com um toque. Touche. A DuPont sempre usava ursos fofinhos nas propagandas. Bela imagem. Um velho indiano, talvez. Um barco com flores no rio, a mata em volta. A gente ficava olhando essas fotos lindas. Mastercard, a família americana é sempre branca. Todos sorrindo, na mesa farta. Pais e as duas filhas. Novidade, meu caro. Racismo é antigo. Tem o encarte ainda, novo. Tartarugas e suas jornadas nos mares. Olha, Bira. A tartaruguinha nas costas da mãe! Um cara de trenó no gelo, toda National Geographic tem fotos do gelo. Falando nisso, como tá o Schumacher?! Propaganda de remédios pra velhice, vitaminas. Um cara com o neto, jogando futebol na praça. Dinossauros, esqueletos. Museu Smithsonian. Interessante. Fotos de antílope africano com um passarinho na cabeça. Baleias jubartes. Posto Shell, o por do sol. Nada a ver com combustível mas a foto é belíssima. Leonardo da Vinci e seu desenho do paraquedas. Uma foto de uma ema saindo de uma casa e deixando crianças com medo. Ossadas misteriosas da Patagônia. Carro da Ford e surfistas, bem. A prancha vai em cima. Jô Soares entrevistando fotógrafos estrangeiros de um safari africano. O Jô queria mostrar sua sabedoria, sempre. Olha, que legal isso. Remédios pra diabetes, numa propaganda. O velhote parece o Francisco Cuoco. Ele fez Beto Rockefeller. Propaganda de empresas de petróleo com foto de árvore e plantação. Não entendi. Sou sábio mas algumas coisas me escapam, não sou perfeito pois do contrário não seria o Thadeu mas sim o próprio Deus, só Ele é perfeito. Pearl Harbor destruída pelos japoneses na segunda guerra. Jeep Isuzu. Nunca ouvi falar dessa marca. Só do nome não gostei. Que susto. Uma cobra na página inteira. Sempre fazem isso. Um hotel em Hong Kong. Tem quem goste, se eu tivesse grana, bufunfa, faz me rir, dinheiro, money também gostaria. Outro Jeep, Cherokee. Nome de tribo americana, que lutavam com Búfalo Bill e Tex Willer. Páginas sobre o rio Nilo. Mapas, povos ribeirinhos, foto aérea. Tem que ter foto aérea na revista. Indígenas africanos. Guerrilheiros africanos, mulheres com alongadores de pescoço. Ursos do polo norte. Seis páginas. Só tem urso branco no polo norte, sabiam?! Só tem pinguim no polo sul. Paleontólogos atrás dos primeiros povos das Américas. Legal. A clássica foto de bisões pastando com as montanhas ao fundo. Nada mais norte americano que isso. Fiordes da Nova Zelândia. São lindos. Não a toa O Senhor dos Anéis foi filmado lá. Fotos de filmes antigos, Tom Cruise novinho. Alpinistas na China. Família no Alasca. Os iglus. Máquina de fotos Canon. Um guepardo olhando a câmera. Nunca tive uma Canon. Hoje o celular tem câmera, é computador, é tudo. Mais propaganda de remédios. Foto preto e branco pra encerrar. Um loiro com botas e calça jeans, do lado de um trator. Olhando pro nada. Um velho dono de um bar, que trampa de papai Noel. As capas do ano todo, todas aqui. Pilhas Energizar, novidade e fazendo oposição a Everedy. Por fim, propaganda da Toyota. New Camry Gallery. Que volta ao passado. Rapaz, tô ficando velho." A porta abriu. -"Olá. Sou o doutor Ravanelli. Quem está de janelinha?!" Thadeu largou a revista e ergueu a mão. -"Eu, professor." Ele seguiu o dentista. A assistente deixou o celular. -"Que bicho grilo mais louco da caixola, tio. O bicho não parava de falar." Bira riu. -"Thadeu é um figura." Lucas pegou a revista. Folheou a revista e estava tudo lá, como o Thadeu descreveu mas era muito mais interessante com ele narrando. Uma hora depois Thadeu saiu, com o sorriso refeito e completo. -"Onde estava esse dentista dos deuses, adorei seu trabalho. Seu consultório é maneiro, agradável. Muito obrigado pela ajuda, doutor. Vou indicá-lo, certamente. Fica com Deus." Lucas deixou Thadeu em casa. -"Achei que ia morrer uma fortuna mas ele foi camarada. Passou cem mangos no cartão. Uma ninharia. Só não vou poder comer torresmo." Disse o satisfeito e sorridente Thadeu. Duas semanas depois, Lucas inaugurou um canal no YouTube, Quinquilharias dos 70,80 e 90. O canal não agradou pois não era novidade. Lucas e Bira procuraram o Thadeu. Ele aceitou participar do canal. Primeiramente discreto e receoso, o homem destilação suas pérolas e bordões. O canal viralizou. Thadeu passou a comentar sobre músicas, programas de tevê, vedetes e cantoras do rádio, filmes e costumes antigos. Thadeu e Lucas comemoraram a conquista de dez milhões de seguidores com uma viagem a Bariloche. Levaram o Bira a tiracolo. -"Primeira vez que viajo de avião e vejo neve." Disse Bira, tirando fotos de Thadeu e Lucas na neve. -"Essa poderia ir pra revista da National Geographic. Os influencers Lucas e Thadeu." FIM