O Avarento
Afrânio tinha suas esquisitices. Algumas eram de nascença outras adquiriu ao longo dos anos.
Era fechado e de poucos amigos. Era solitário e sempre dizia que preferia a companhia de animais de estimação que a presença de algumas pessoas que julgava tóxicas.
Não sabia que as pessoas o julgavam um ser tóxico por seu jeito estranho de ser, sua língua sempre afiada e pronta para uma palavra desagradável e seu mau humor e impaciência que eram sua características marcantes.
Na infância e adolescência teve uma paixão oculta e até certo ponto proibida por sua tia apenas três anos mais velha que ele. Foram criados bem próximos e ele alimentou aquela paixão que a tia nunca teve conhecimento.
Quando ela casou com apenas dezoito anos, como era costume na época, ele ficou imensamente triste. Mas nunca ninguém soube dessa paixão. Guardou só pra ele e sofreu sua decepção em silêncio.
Acabou matando esse amor dentro de si, ficando apenas as lembranças de quando estavam sempre juntos e tinham uma convivência de amigos e parentes. O amor que sentiu ficou guardado bem no fundo de seu coração e sua alma.
A decepção o deixou ainda mais esquisito e fechado em si mesmo. Começou a nutrir uma obsessão por dinheiro e por ter que sempre economizar.
Teve uma criação rígida e até certo ponto abusiva, o que lhe rendeu traumas que carregou por toda vida.
Começou desde cedo a fazer um negócio aqui e outro ali e sempre ganhava um dinheirinho guardava como se fosse sua vida.
Amava música e tocava alguns instrumentos. Destacava-se no bandolim e quando tocava encantava a todos. Mas ele nunca se achava bom o suficiente em nada.
Aos dezoito anos seu pai lhe conseguiu um emprego. Como era costume nos anos de sua juventude naquela cidade pequena em que vivia, estudou pouco, mas era muito inteligente e esperto e tinha tino para os negócios.
Pouco tempo depois abandonou o emprego e foi cuidar dos próprios negócios. Sempre se saía bem e com os lucros que obtinha, agiotava, aumentando ainda mais seu patrimônio.
Aos vinte e cinco anos nunca tinha namorado. Era quieto e tímido. Não era um homem bonito e nem ousado. Sempre ficava na sua.
Aos vinte e nove anos começou a namorar uma professora que tinha mais ou menos a sua idade. Muito mais por insistência dela e das famílias que por sua vontade ou por estar apaixonado. Foi apresentado a ela por sua irmã que também era professora e trabalhavam juntas. Começaram a se conhecer e depois a namorar.
O tempo foi passando e ele não tinha nenhuma intenção de se casar. A namorada sempre cobrava uma posição e ele desconversava.
Depois de onze anos ela se cansou de esperar uma atitude dele e terminou o namoro.
Afrânio se sentiu perdido e abandonado, ainda mais quando ela começou a namorar um viúvo e se casou um ano depois.
Ele se desiludiu de vez com as mulheres.
Morava com seus pais. Seus irmãos todos se casaram e ele ficou lá com os pais.
Quando tinha cinquenta anos seu pai faleceu e Afrânio e sua mãe passaram a cuidar um do outro.
Ele passou a ser cada vez mais solitário e fechado em si mesmo.
Continuava a juntar bens e dinheiro que pra ele nunca era o suficiente.
Sentia insatisfação com sua vida tão sem sentido, mas não conseguia reagir.
Anos depois sua mãe faleceu. Afrânio ficou totalmente sozinho.
O tempo foi passando e ele estava cada vez mais solitário.
Em sua avareza, pensava que tinha que poupar até em comida. Alimentava mal, vestia-se mal, vivia mal.
Nas noites vazias e mal dormidas sentia o peso da solidão. Muitas vezes chorava em silêncio, mas não sabia exatamente o que podia fazer por si.
Pensava que a vida estava se tornando um fardo muito pesado para se carregar e muitas vezes sentia que não iria aguentar por muito tempo seguir pela vida carregando todos os seus traumas, solidão e esquisitices.
Algumas vezes pensava no que fez de sua vida. No imensidão do vazio que trazia no peito e na alma.
Nunca se casou, não teve filhos.
Tornava-se cada vez mais sovina, avarento.
E seu coração resolveu que não queria mais conviver com aquela alma sombria, com aquele corpo melancólico, com aquela mente amarga.
E numa manhã bem depois de seu desjejum frugal, típico de pessoas pão duras e que se importam muito mais com dinheiro que com seu bem estar, seu coração deu um chilique, um piripaque.
Não fosse aquela senhora, que ia duas vezes por semana arrumar sua casa, preparar sua comida sempre insossa e aguentar seu mau humor, ele teria morrido.
Ela chamou a irmã dele e conseguiram socorrê-lo.
Ele passou muitos dias no hospital, passou por uma cirurgia delicada.
Quando voltou pra casa sentiu que tudo estava ainda mais insatisfatório e o silêncio muitas vezes o incomodava. Muitas vezes tinha vontade de conversar de abrir seu coração, mas lhe faltava coragem. Nunca demonstrava gratidão pela chance que a vida lhe deu e nunca pensou em mudar mesmo depois de ver a morte de perto.
Foi seguindo sua vida onde apenas existia e nunca vivia plenamente.
Os anos se iam passando e ele apenas acumulando dinheiro e bens.
Passava pela vida como se fosse um miserável.
Quando estava com pouco mais de oitenta anos seu coração novamente demonstrou toda a insatisfação pela infelicidade constante e voltou a falhar.
Foi novamente hospitalizado.
Seu estado era grave.
Ficou por muitos dias internado.
Muitas vezes ficava com o olhar distante como se tivesse pensando em sua vida.
Um dia em um delírio chamou por sua tia que foi sua paixão de adolescente.
Sua irmã que também era muito amiga da tia, pediu que ela fosse visitá-lo.
A tia, que já estava viúva, foi até o hospital.
Quando ele abriu os olhos sentiu um misto de surpresa e emoção.
-Marília! Você aqui. Você veio me visitar? Ou estou sonhando?
-Sim. Eu vim te visitar. Fomos tão amigos quando éramos jovens. Depois cada um seguiu sua vida.
Ele pediu pra ficar sozinho com ela.
-Marília, eu quero que você me ouça, mas que nunca comente nada com ninguém. Posso confiar em você?
-Claro que sim. Eu sei guardar um segredo. Lembra quando a gente era bem jovem e que Clara, você e eu éramos confidentes? Não tínhamos segredos.
-E se eu disser que eu tinha alguns segredos?
-Algum segredo inconfessável todos nós temos.
-Sabe que eu não tenho amigos? Não tenho ninguém pra conversar, pra contar de minhas tristezas.
-Você é muito sozinho. Não é bom ser assim.
-Eu me tornei assim. Estes dias aqui neste leito de hospital, que eu sei que é meu leito de morte, eu tenho pensado muito na minha vida.
-Que bobagem. Não é seu leito de morte. Daqui a pouco você está bem novamente.
-Não, sabemos que não. Sabe, eu queria tanto ter sido diferente. Eu queria tanto ter sido feliz pelo menos um pouco. O que é a felicidade?
-Nós fomos muito felizes. A nossa vida era tão boa.
-Eu gostava da nossa amizade, mas mesmo assim, feliz eu nunca fui. Se eu pudesse ter uma chance de começar de novo. Mas se eu tivesse esta chance, será que eu faria alguma coisa diferente?
-Com a experiência que você tem, provavelmente sim.
-Não sei. Eu só conheço amargura, tristeza, vazio. Acho que não conseguiria viver de outra forma. Por que eu vivi tanto se nem sei viver? A minha existência foi um vazio imenso, uma insatisfação imensa. Por que eu não fui capaz de fazer nada por mim? Você não imagina a solidão que mora dentro de mim. Não imagina o vazio de minha alma e meu coração.
-Muitas vezes a gente se sente amarrado e não consegue mudar. Mas não imaginava que você se sentia tão infeliz assim.
-Pois é. Eu nunca vivi. Meu espírito se viu preso em amarras e nunca tentou se soltar.
-Eu sinto tanto por você, Afrânio.
-Eu também sinto. Eu nunca nem sequer consegui dizer a ninguém o que estou lhe dizendo. Estou tão feliz com sua visita e meu coração está mais leve pois conseguiu se abrir. Obrigado, Marília! Vou partir mais feliz e mais leve depois dessa nossa conversa.
Marília ficou com ele por algum tempo. Relembraram sua infância e juventude. Contaram casos e riram como ele não ria há muito tempo.
Ela foi embora.
Nesta mesma noite ele faleceu.
Dias depois seus irmãos estavam tratando de dividir entre eles a fortuna que ele deixou.
Cada um seguiu sua vida e usufruiu do que ele juntou e nunca usufruiu.