Histórias que gosto de contar – Os conflitos de dona Celina
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 31 de janeiro de 2023
Muito cedo ela conheceu a expressão “pegar no pesado”, a responsabilidade do trabalho para dar de comer aos irmãos mais novos. Um acidente vitimou pai e mãe, deixando três crianças, dois meninos e uma menina, ainda com 15 anos de mocidade. Desde criança acompanhara seus pais no plantio, na colheita, no preparo do feijão e do milho: debulhar, tirar a palha no caso do milho, colocar para secar e ensacar para venda. Essas tarefas fizeram de Celi, como era conhecida nas pequenas propriedades que cultivavam a lavoura, lá pelas bandas de Horizonte, uma mulher destemida, forte, mas de uma beleza bem feminina.
Herdeira das terras do pai e conhecedora de como cultivá-las, “não arredou o pé do que era seu, por direito. Achando-se capaz de criar os filhos de seus pais, não atendeu aos conselhos para ir morar com uma tia, irmã de seu pai, na capital, onde teriam, ela e os irmãos, um teto seguro para morar. Os tios “tomariam de conta” da propriedade, que ela não se preocupasse.
Dizendo que gostaria de continuar um pouco por lá, para não esquecer os pais, a menina astuta, esperta, foi ficando, quando viram ela já estava com quase dezoito anos, uma moça feita, formosa, sabia negociar suas colheitas e ninguém se atrevia a lhe passar a perna, com o seu jeitão de xerife, mandona. Os irmãos, bem cuidados e excelentes lavradores. Todos admiravam aquelas duas belas e produtivas propriedades. Choviam compradores, mas ela fazia ouvidos moucos, para esses e para àqueles que chegavam com proposta de casamento.
No seu jeitão de ser, ficara sabendo que havia gente querendo assaltar suas propriedades. De pronto adquiriu dois revólveres, sabe-se lá como, amarrou-os na cintura e deu início a uma nova atividade, espantar marginais que rondavam o seu terreiro, como se expressava para quem quisesse ouvir. Era respeitada.
Aos vinte e um anos de idade casou-se, mas não teve o cuidado de escolher com quem. O coração ordenou! Os primeiros anos o casal foi feliz, os irmãos gostavam do rapaz, era boa pessoa, trabalhador e os dois prosperaram, compraram uma casa na sede do município e Dona Celi, preocupada com os irmãos, trouxe-os com ela e os colocou para estudar. Seu sonho era ser mãe, o que aconteceu pouco mais tarde. Grávida, pouco visitava suas propriedades, sabia que o marido cuidava bem delas, ele tinha experiência, seus pais eram proprietários de uma fazenda, embora menor que a dela. Vivia despreocupada.
Como o gado só engorda sob o olhar do dono, as coisas foram ficando preocupantes. O marido já passava mais tempo, dizia ele, na labuta. Os empregados não vinham dando conta do “recado”, e a presença constante dele era necessária. O bichinho da desconfiança começou a aperrear o juízo da parida. Fofocas chegavam aos seus ouvidos sobre a presença de mulheres nas fazendas. Perguntado, o marido dizia que era gente procurando emprego.
A cisma só aumentava, naquele dia, já não se aguentando mais, vestiu uma calça camuflada, pegou os dois revólveres, amarrou-os na cintura, como fazia outrora, vestiu um colete verde militar, calçou seu coturno e rumou, em seu jipe, para a fazenda, sem aviso dar. Os de casa, empregadas e jardineiro, ficaram preocupados, nem tanto, né? Sabiam da sensatez da patroa, e que ela jamais cometeria um desatino, uma loucura. Seria só um susto, cochichavam entre eles.
A porteira da fazenda ficava uns 200m da casa, e ela não queria descer do jipe para abri-la, sacou um dos revólveres e deu dois tiros para cima. Ninguém ouviria, a não ser os de casa. A sede da fazenda mais próxima da sua, ficava a mais de um quilômetro. Assim, pensou ela, não terei curiosos externos para dar explicações sobre o meu show.
Alguns trabalhadores apareceram, um correu para abrir a porteira, sabendo que a patroa chegara, e estava enfezada. Duas mulheres apareceram também. Alguém gritou, não vão lá! Elas pararam sem saber do que se tratava. Só perceberam quando o veículo chegou mais perto da casa e ouviram um grito desaforado e um revólver apontado para elas. Em um segundo, as duas “passaram sebo nas canelas”, e saíram em disparada rumo ao portão. O marido, que estava dentro de casa, apareceu, percebendo o que estava acontecendo, deu marcha à ré. Não pretendia se expor na frente dos empregados.
Calmamente, a mulher desceu do jipe, entrou em casa, conversou com o marido e retornou para Fortaleza, em litígio de separação. Nada mais se ouviu falar daquele incidente dentro de casa. Já pelas redondezas não rolava outro assunto, só a corrida das duas mulheres, quase nuas e sem rumo. Celi não mais precisou de outro flagrante. O povo de casa sempre ficava preocupado quando ela começava a limpar seus dois revólveres.