Alergia
“Eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas mágoas. ”
Jean-Paul Sartre
Era início de agosto. O vento ondulava.
— Sabe aquela poeirinha que faz a gente espirrar? — disse a professora veterana.
— Então, a poeira está em toda a parte — respondeu a amiga, recém contratada.
As duas procuravam o garçom que demorava. Bebericavam seus salários em goles minúsculos.
Pensavam em curtir a tarde no lugar, já que à noite o espaço seria tomado por jovens.
— Não é rinite alérgica, meu bem!
— É alergia de baderna, sim eu sei.
Por fim, o garçom encontrado e o pedido feito. Esperaram trocando mensagens com os ausentes.
— Tenho que ir ao banheiro, querida!
— Estarei aqui quando voltar.
Ficar um pouco sozinha é difícil para alguém acostumada à multidão. Relanceou o olhar ao redor. Focou na janela e viu a criança passando com o animalzinho ao colo.
— Demorei? Agora é sua vez.
— Demorado aqui é o atendimento.
Enquanto a professora novata não se decidia ir ao banheiro, a veterana viu a criança ninando o gatinho. A mãe vinha logo atrás, vagarosamente, as mãos ocupadas entre sacolas e celular.
— Não é uma gracinha? — disse a professora, puxando a cadeira e se sentando com vagar.
— Ah, sim! E como é — falou a veterana, franzindo o nariz.
— Mas, vai crescer. Como seus alunos.
Levantaram as taças quase vazias e brindaram, no exato momento em que a criança atirou o gato na rua. O tin tin das taças se perdeu na freada brusca. O carro pegou o gato. A mãe correu e segurou a criança pelo braço.
— Misericórdia! Você viu o que vi? — perguntou a veterana.
— Preferia não ter visto isso — comentou a outra, fazendo cara de nojo para o copo.
— E ela ainda vai crescer...
— Vai sim e aí vamos ver a ... — falou a mais nova, balançando a cabeça.
A professora mais velha levantou as sobrancelhas para dizer algo, mas foi acometida por uma crise de espirros ininterruptos.
O garçom solícito e a colega atônita ficaram esperando sem saber o que fazer. Por fim, preocupadamente levantaram os olhos para a janela.
— Não acredito que ela vai fazer isso! — disse a novata.
— Ela quem? — perguntou a veterana, enxugando o nariz.
Rapidamente o garçom apontou com a caneta. E as duas viram:
A mãe da menina filmando a tragédia. Com a outra mão segurava a filha e as sacolas. A menina tentando se desprender dela. As buzinas se descabelando. O vento de agosto soprando os cachinhos da menina que olhava para trás, na direção da janela, ao mesmo tempo em que iniciou uma sério de estrondosos espirros.