Silvano

Criticar o Estado, a Igreja e a família tradicional com letras diretas, em português ou inglês, já se tornara quase um princípio.

A parte instrumental vinha depois e às vezes demorava para ser concluída.

Eles usavam um teclado de brinquedo e ganharam um de verdade. Iriam usá-lo, mas prometeram que caso Zími também ganhasse uma bateria de verdade, o duo Crop Circles se separaria.

Ele poderia tocá-la depois em outro projeto musical, mas seriam irredutíveis quanto à dissolução.

Mila Cox dizia que isso faria a banda ser realmente descoberta.

Vê-la ouvindo deliberadamente o Galaxie 500, dava uma alegria que depois ficava batizada com a estranheza da aparente obsessão que ela apresentava com os três primeiros discos do Elvis Costello, mesmo que ele também gostasse.

Ela estava ouvindo também, por vezes seguidas, o Solid Gold, do Gang of Four, fazendo parecer que vai roubar alguma coisa dali.

Agora dividiam um apartamento e ambos estavam mais focados.

Ele pegou o quarto da empregada e continuou pagando o mesmo valor que gastava em sua morada anterior; um quarto de pensão em que viveu por dois anos com o que ganhava como livreiro, depois de sair de um apartamento em que pagou adiantado os três primeiros meses de aluguel, e então não pagou nem mais um centavo, e ficou lá até ser despejado.

Ela, que deixou a casa da família na Penha, inteirava o aluguel pagando um pouco mais com o que ganhava como copywriter, e ficava no quarto principal.

A diferença de idade despertava a curiosidade dos outros moradores do prédio.

Eram vistos como uma espécie de “Carpenters do Mal”, desde que a vizinhança descobriu que eram parceiros musicais.

Essa alcunha era atribuída a eles pelas pessoas da vizinhança que ouviam gêneros popularescos tocados por semi-celebridades descartáveis que desaparecem rapidamente dos holofotes para logo ressurgirem com escândalos do mais baixo nível.

Ela gostava tanto de Venom quanto de Hello Kitty. Também de X-Ray Spex e Mafalda.

Ele lia Mad e Hermann Hesse, e sua vida parecia o resultado dessa fusão.

Geravam muito mais curiosidade juntos do que individualmente.

Ela queria entender como ele sobrevivia numa vida tão minimalista quanto relatava, quando se encontravam para ensaiar ou finalizar alguma música.

Ele sabia que teria mais espaço e conforto do que no quarto da pensão em que vivia. Era quarto e banheiro, e isso bastava. Nunca pensou que deixaria de morar sozinho, pois até então considerava o estilo de vida ideal.

Ela vivia com o pai e a mãe, onde cresceu alimentando uma ambição precoce pela música, e saiu dali sem brigar.

A meta agora era de lançar um single a cada duas semanas até que as ideias se esgotassem, e aí sim seriam marcados novos shows.

Quando tocam no interior, não é raro que durmam no carro de Cox, que tem toca-fitas e muitas fitas no porta-luvas.

Ao lembrar dessas horas, um frio percorre a espinha de Zimi, que sempre reclama que não tem mais idade para isso, mas sabe que é necessário fazer. E sabe sobretudo que sempre vale a pena.

Até mesmo as eventuais desventuras reais que vão muito além do Spinal Tap dessa trajetória são lembranças de momentos que não foram desperdiçados na zona de conforto.

Zími sempre falou que, com quase cinquenta anos, nunca soube o que é realmente uma zona de conforto. A busca por ela passou a ser quase obsessiva, embora ele não saiba nem mesmo se isso de fato existe. Apenas ouvia falar e queria descobrir.

Já MIla Cox alega que sua saída da casa dos pais vai muito além da necessidade de sair da zona de conforto.

Agora que moravam juntos, eram vizinhos de andar de Silvano., professor de Geografia, fã de rock alternativo.

Silvano frequentemente conseguia atestados para não ir trabalhar, particularmente por tendinite, e não raro tinha tempo e disposição para conversar com eles sobre música e assuntos da vizinhança. Era morador antigo do prédio, mas era reservado e pouco conversava com os outros vizinhos, de modo que pouco se sabia sobre ele na vizinhança.

É mais conhecido como ‘o homem da jaqueta de couro’ pelos vizinhos.

Mila Cox e Zími já tinham notado que Silvano tinha comportamento e hábitos de alguém que nasceu com dinheiro. Sua coleção de discos, por exemplo, só poderia pertencer a alguém que tem ou já teve dinheiro.

Ele mostrou seu apartamento, que de tão abarrotado de Lp’s, compactos, cd’s , revistas e livros, permitis que apenas uma pessoa pudesse aproveitar aquele material com conforto.

A imensa e belíssima poltrona de couro certamente era herdada, e com o banco na frente, ocupava boa parte do espaço que sobrava da sala pequena.

Ele tinha várias edições antigas da revista Creem e Zími ficou embasbacado ao ver.

Enlouqueceu ainda mais ao ser presenteado com um agasalho do Fênix, do Uruguai, que era o time de Silvano.

Silvano contou que era uruguaio, mas antes que entrasse na escola, já vivia em São Paulo com os pais, também uruguaios. Era filho único.

O pai morreu quando ele tinha dezenove anos e a mãe, quando ele tinha vinte e um.

Viviam num apartamento caro no centro de São Paulo, que foi vendido quando Silvano ficou sozinho.

Comprou então um apartamento menor, também no centro, e trabalhava como professor no Estado. Sabia que não havia grandeza onde não houvesse simplicidade. Guardou o que sobrou do dinheiro da venda do apartamento para envelhecer com dignidade.

Tirou suas coisas dali e fez a mudança. Vendeu o que havia de seus pais no apartamento, exceto a poltrona, que pertencia ao pai.

Tinha agora quarenta e três anos. Cinco a menos que Zími e vinte a mais que Mila Cox.

Naquele dia, muito foi falado sobre o quanto o rock sempre foi marginalizado, censurado e boicotado no Brasil, o que impediu que o gênero atingisse mais popularidade.

Silvano inclusive mencionou sobre a bizarrice da passeata contra a guitarra elétrica.

O vexame de ser artista e estar ali era similar ao de ser jogador de futebol e estar jogando na derrota por sete a um, no jogo que deu a maior alegria futebolística da vida de Zími. Ou ao persistente vexame popular de adotar cegamente um político de estimação e defendê-lo até o fim, ignorando os limites do ridículo.

Mila Cox e Zími contaram a Silvano que se conheceram através de Sara Cox, tia de Mila, que cursou jornalismo com Zími trinta anos antes.

Sara nunca vive numa residência por muito tempo, e há anos passava a maior parte do tempo no exterior, e comentava os shows que assistia.

Antes de voltarem para casa, Mila Cox e Zími tramaram a publicidade da banda no Uruguai, para fazerem shows e venderem merchandise.

Tudo no Chevette Jeans 79 de Mila Cox, mas dormindo em camas de hotel e tocando nos três estados brasileiros do Sul para financiar a viagem.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 28/01/2023
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